Quando terminou, Ceres sentiu-se melhor do que antes da invasão. Era como uma profunda sensação de paz a espalhar-se através de si.
“Já está?”, perguntou Ceres.
Alteus e Lin pegaram nas mãos um do outro.
“Nem por isso”, disse Alteus.
A cúpula em torno de Ceres pareceu desmoronar-se para dentro, com seu conteúdo a desaparecer à medida que se transformava em pura luz. Aquela luz reuniu-se no lugar onde o Ancião e a Feiticeira estavam, até Ceres não os conseguir vislumbrar nela.
“Será interessante ver o que acontece a seguir”, disse Lin. “Adeus, Ceres.”
A luz explodiu em direção a Ceres, preenchendo-a, enchendo-a através dos canais de seu corpo, como água ao longo de aquedutos recentemente construídos. A luz enchia-a e continuava a enchê-la, entrando e parecendo que havia mais poder dentro de Ceres do que jamais alguma vez tinha havido. Pela primeira vez, ela entendeu a real profundidade dos poderes dos Anciães.
Ela ficou ali, pulsando com poder, e ela sabia que tinha chegado o momento.
Tinha chegado o momento para a guerra.
Jeva conseguia sentir a tensão a crescer a cada passo que dava para a sala de reuniões. As pessoas ali olhavam para si da forma que ela teria esperado que as pessoas fora de suas terras olhassem para os de sua espécie: como se ela fosse algo estranho, diferente, até mesmo perigoso. Não era uma sensação de que Jeva gostasse.
Seria apenas porque eles não viam muitas com as marcas de sacerdotisas por ali, ou era algo mais? Apenas quando começaram os primeiros insultos e acusações da multidão ali reunida é que Jeva começou a entender.
“Traidora!”
“Tu levaste tua tribo à morte!”
Um jovem saiu da multidão com aquela arrogância que só os homens jovens conseguiam gerir. Ele caminhou como se fosse o dono do caminho que levava até à Casa dos Mortos. Quando Jeva se dirigiu para o lado dele, ele a bloqueou.
Jeva deveria tê-lo atingido apenas por isso, mas ela estava ali para coisas mais importantes.
“Afasta-te”, disse ela. “Eu não estou aqui para a violência.”
“Já te esqueceste dos costumes de nossa gente assim tão completamente?”, perguntou ele. “Tu arrastaste tua tribo para morrer em Delos. Quantos voltaram?”
Jeva percebeu que ele estava enraivecido. O tipo de raiva que até mesmo as gentes dela sentiam quando perdiam alguém próximo. Dizer-lhe a ele que eles tinham ido até aos antepassados e que ele devia estar feliz não serviria para nada. Em qualquer caso, naquele momento, Jeva não tinha a certeza de que ela acreditava nisso. Ela tinha visto as mortes sem sentido da guerra.
“Mas tu voltaste”, disse o jovem. “Destruíste uma de nossas tribos, e voltaste, covarde!”
Noutro dia qualquer, Jeva tê-lo-ia matado por ter dito aquilo, mas a verdade era que o choramingar de um idiota não importava, não em comparação com tudo o que estava a acontecer. Ela dirigiu-se para o lado dele novamente.
Jeva parou quando ele sacou de uma faca.
“Tu não queres fazer isto, rapaz”, disse ela.
“Não me digas o que eu quero!”, gritou ele, e atirou-se a ela.
Jeva reagiu por instinto, desviando-se da direção do golpe a balançar, enquanto atacava com suas correntes de lâminas. Uma enrolou-se à volta do pescoço dele, puxando enquanto ela se movia com a velocidade de uma longa prática. O sangue espirrou e o jovem agarrou a ferida, caindo de joelhos.
“Maldito”, disse Jeva suavemente. “Porque é que me obrigaste a fazer isto, seu idiota?”
Não houve resposta, é claro. Nunca havia qualquer resposta. Jeva sussurrou as palavras de uma oração para os mortos por cima do jovem e, em seguida, levantou-se, levantando-o. Outros aldeães a seguiram enquanto ela continuava em seu caminho, e Jeva sentia a tensão ali agora onde antes havia havido piadas. Eles a seguiam de perto como uma guarda de honra, ou a escolta de um prisioneiro para sua execução.
Quando chegou à Casa dos Mortos, os mais velhos da aldeia já estavam à espera dela. Jeva entrou suavemente e descalça, ajoelhando-se diante da pira que queimava incessantemente e deixando ali cair o corpo de seu atacante. Ela ficou ali, enquanto ele começava a arder, a olhar em redor para as pessoas que ele tinha ido convencer.
“Tu vens aqui com sangue nas tuas mãos”, disse um Orador dos Mortos, dando um passo para a frente com seus mantos a rodopiar. “Os mortos disseram-nos que viria alguém, mas não que isso iria acontecer assim.”
Jeva olhou para ele, indagando-se se era verdade. Tinha havido um tempo em que ela não o teria questionado.
“Ele me atacou”, disse Jeva. “Ele não era tão rápido quanto ele pensava.”
Os outros que ali estavam assentiram. Tais coisas podiam acontecer naquelas partes mais severas do mundo. Jeva não deixou que nenhuma da culpa que sentia transparecesse em seu rosto.
“Vieste para nos perguntar alguma coisa”, disse o Orador.
Jeva assentiu. “Vim.”
“Então pergunta.”
Jeva ficou ali, recolhendo seus pensamentos. “Eu peço ajuda para a ilha de Haylon. Uma grande frota está a atacá-la, sob as ordens do Primeiro Pedregulho. Eu acredito que nosso povo pode fazer a diferença.”
Naquele momento, vozes se entoaram, falando ao mesmo tempo. Havia perguntas e exigências, acusações e opiniões, todas parecendo se esbaterem juntas.
“Ela quer que a gente vá morrer por ela.”
“Nós já ouvimos isso antes!”
“Porquê lutar por pessoas que não conhecemos?”
Jeva ficou ali, deixando-se afetar por tudo aquilo. Se aquilo corresse mal, muito provavelmente ela não sairia daquela sala. Dado quem ela era, ela deveria ter tido uma sensação de paz com isso, mas Jeva também deu por si a pensar em Thanos, que a tinha salvado, arriscando sua própria vida, e em todas as pessoas que estavam presas em Haylon. Eles precisavam que ela tivesse êxito.
“Nós devíamos dá-la aos mortos por tudo o que ela fez!”, exclamou um.
O Orador dos Mortos colocou-se então ao lado de Jeva, levantando as mãos para pedir silêncio.
“Sabemos o que nossa irmã está a pedir”, disse o Orador. “Agora não é o momento para falar. Nós somos apenas os vivos. Agora é o momento de ouvir os mortos.”
Ele estendeu a mão para seu cinto, tirando uma bolsa dos pós sagrados misturados com as cinzas dos antepassados. Ele atirou-a para a pira, e as chamas atearam.
“Respira, irmã”, disse o Orador. “Respira e vê.”
Jeva inspirou o fumo, levando-o bem para dentro de seus pulmões. As chamas dançavam no fosso abaixo dela, e pela primeira vez em anos, Jeva viu os mortos.
Começou com o espírito do homem que ela tinha matado. Ele levantou de seu corpo a arder, caminhando através das chamas na direção dela.
“Tu mataste-me”, disse ele em algo parecido com choque. “Tu mataste-me!”
Ele atacou-a então, e embora os mortos não devessem ter sido capazes de tocar nos vivos, Jeva ainda o sentia tão seguramente como se ele lhe tivesse dado um estalo enquanto ele estava vivo. Ele atacou-a e, depois, deu um passo para trás, olhando em expectativa.
Os restantes mortos apareceram a Jeva naquele momento, e não eram mais amáveis do que o jovem que ela tinha morto. Eles estavam todos ali: as pessoas que ela havia matado com suas próprias mãos e os que ela havia levado até às suas mortes em Haylon. Eles apareceram-lhe, um por um, e um por um, eles atacaram Jeva, com golpes que a deixaram a rebolar, atirando-a ao chão, reduzindo-a a algo que se aguentava no chão.
Pareceu demorar uma eternidade até eles se afastarem de Jeva e ela ser capaz de olhar para cima novamente. Ela deu por si a olhar para Haylon. Uma ilha cercada por navios numa batalha intensa.
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