Comecemos dizendo que o massacre não foi um evento repentino, mas sim que alguns fatos anteriores contribuíram para alimentar as tensões e o ódio entre norte-americanos e chineses. Reuni muitas informações do livro The Chinatown War, que recomendo que você leia.
Poucos dias antes, o chefe de um dos vários clãs da máfia chinesa, um certo Yo Hing, havia organizado o sequestro, motivado por dinheiro, de uma das poucas mulheres casadas em Chinatown. Chamava-se Yut Ho e diziam ser belíssima.
Isso foi possível, porque Yo Hing tinha estreitas relações financeiras com as administrações locais, principalmente os xerifes e os oficiais da lei, que não apenas fechavam os olhos aos crimes, como também recebiam uma grande porcentagem dos lucros.
É claro que a facção rival, representada pelo chefe e comerciante de tecidos Sam Yuen, não engoliu o insulto, que minava seu poder local. Com a ajuda de outras autoridades norte-americanas, Yuen conseguiu desembarcar em São Francisco uma gangue de guerreiros Tong recém-chegada da China e armada até os dentes.
Na noite de 23 de outubro, o esquadrão de assassinos liderado por Ah Choy, irmão da mulher sequestrada, iniciou um tiroteio contra Yuen. Sam Yuen saiu ileso, mas Choy foi mortalmente ferido e abandonado em agonia em um dos becos de Chinatown. Apesar de ter ordenado o sequestro com forte apoio da polícia local, Yo Hing denunciou Yuen como o mandante da tentativa de assassinato e o mandou para a prisão. Foi estabelecida uma fiança no valor de dois mil dólares, uma quantia anormal para a época, especialmente para um chinês. A intenção era fazer seu rival apodrecer na prisão pelo tempo necessário para engordar os bolsos de juízes e advogados, condená-lo à morte e apropriar-se de seu território. Mas Yuen percebeu o esquema e alegou ser capaz de pagar a imensa quantia. Ele foi à sua casa acompanhado pela polícia, que descobriu que o dinheiro estava escondido no tronco de uma árvore, onde havia muito mais que o valor da fiança! Uma enorme riqueza resultante do tráfico clandestino, que atraiu não só os oficiais da lei.
Um dos agentes presentes naquela manhã de 24 de outubro de 1874 era um certo Jesus (!) Bilderrain, um policial de reputação macabra conhecido por ser ganancioso, ladrão e profundamente racista. Houve também várias queixas contra ele por crimes de roubo, principalmente de galos de briga. Ele também era um apostador inveterado e, junto com seu irmão Ygnacio, controlou e organizou os famosos blocos eleitorais contra a comunidade latina de Los Angeles em nome do Partido Democrata por anos, evitando assim que a minoria étnica votasse.
No entanto, esse sujeito foi visto como um exemplo de excelência. Jesus foi reverenciado como um herói pelos juízes e pela imprensa quando a investigação sobre o massacre teve início e suas palavras passaram a valer como ouro.
Ao contrário do que se acredita, na China, o ópio não era utilizado com as mesmas finalidades patológicas e viciantes como no Ocidente, mas sim para fins terapêuticos e religiosos. Foi apenas depois da queda do império Qing e das guerras anglo-chinesas de 1830 a 40 que a substância foi deliberadamente distribuída pela própria Inglaterra em grandes quantidades entre a população chinesa, a fim de aumentar seu monopólio e converter a maior parte das safras agrícolas necessárias em plantações de ópio, adequadas para exportação em todo o mundo. A China tentou conter a propagação, mas sem sucesso. Após as migrações para a América, o mau hábito e os tráficos a ele associados desembarcaram no Novo Continente administrados, de comum acordo, tanto pela máfia chinesa quanto pelo próprio governo dos Estados Unidos. Na foto, um salão de ópio chinês clássico de 1890. ia...
Bilderrain afirmou que, na noite de 24 de outubro, havia ido ao Negro Alley com outros homens, porque haviam sido atraídos por alguns tiros. Entrou em um beco, foi ferido e pediu a ajuda do agente Thompson, que foi morto por tiros disparados pelo próprio Yuen. O assassinato a sangue frio parece ter então incitado a multidão, que se organizou em pouco tempo e invadiu a área, levando ao massacre. Embora atroz, todo o episódio foi tratado como uma loucura generalizada causada por uma rixa contra os chineses, que aparentemente afundavam a cidade na fome e no vício, enquanto obtinham quantias fabulosas de dinheiro. Foi inclusive desenterrada a história de que os chineses estavam coletando essas somas em nome de um mandarim que tinha a ambição de tornar-se governador da Califórnia. Uma farsa que remonta à corrida do ouro, mas que foi considerada verdadeira por alguns livros da época e que infelizmente já havia sido usada como argumento para as famosas Leis Raciais, que determinavam que “nenhum chinês poderia testemunhar em julgamento contra um branco" .
Embora o massacre tenha ocorrido praticamente diante dos olhos de todo o mundo, graças também aos relatórios implacáveis escritos em tempo real por H.M. Mitchell, repórter do Star, o julgamento terminou rapidamente, absolvendo a cidade como "vítima do horrendo comércio chinês e do clima de violência de sua máfia". Não há dúvida de que poderes políticos influentes levaram ao arquivamento do caso, os mesmos que mais tarde usaram a memória do massacre para fazer cumprir a infame "Lei de Exclusão Chinesa", de 1882.
A verdade dos fatos, como sempre, é muito mais amarga e até banal. Na origem do massacre, que feriu profundamente a alma estreita e racista dos falsos moralistas da época, há ganância e roubo.
As autoridades estadunidenses, principalmente a polícia local, sempre mantiveram relações íntimas com a máfia chinesa. Detinham o controle exclusivo não apenas sobre o ópio e especiarias, mas, acima de tudo, sobre o comércio — oficial ou clandestino — de mão de obra e produtos chineses que eram importados para os Estados Unidos a baixíssimo custo. O que afetava negativamente os preços dos produtos nacionais, que, portanto, despencavam. Além disso, os grandes empreendimentos, como as ferrovias, que recebiam enormes subsídios do Estado, costumavam recorrer a trabalhadores chineses, preferindo-os aos americanos e europeus, porque custavam menos e trabalhavam em dobro. Durante a era dos primeiros sindicatos, os chineses foram usados como “fura-greves” pelos próprios empresários para vetar as reivindicações da classe trabalhadora. Tudo isso inflamou enormemente a opinião pública, que passou a ver os chineses como perigosos e inclinados à prática de concorrência desleal. A foto mostra a parte de trás de uma clássica loja de especiarias em Chinatown, na década de 1880. alia...
O escândalo que se seguiu à tragédia evidenciou o quão pobre e cruel era a alma dos protagonistas. Graças às inúmeras investigações e depoimentos de sobreviventes, sobretudo do próprio Hing, que colocou nas ruas provas documentais do conluio e de “favores” entre ele, a máfia e a polícia local. Em seguida, toda a documentação e as peças processuais foram arquivadas e todo a matança foi varrida para debaixo do tapete. Elas só tornariam a aparecer muitos anos depois, graças às pesquisas exaustivas dos historiadores e às conjunções favoráveis, que veem a China hoje como a grande potência econômica do futuro.
Para além de qualquer consideração possível, o interesse principal deste livro é informar e ajudar a tornar conhecidos os grandes acontecimentos do passado, ligados à velha América do Norte e sua relação primitiva com a comunidade chinesa. Portanto, direi apenas como as coisas realmente aconteceram naquela noite de 24 de outubro de 1882 em Chinatown.
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