1 ...6 7 8 10 11 12 ...23 Assim, D. Francisco de Lima morreu tão pobre que unicamente se lhe encontraram de seu 40 réis em dinheiro. Ele havia despendido todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões de índios que reunira e visitara no seio de inóspitos sertões, sendo-lhe preciso, para cumprimento deste apostólico dever, transpor mais de duzentas léguas na avançada idade de 70 anos. D. José Fialho não deixou nunca de exercitar as funções pastorais com honra sua e proveito público. Por ocasião de uma epidemia que grassou na província, este respeitável antístite frequentou o púlpito, visitou os enfermos, acudiu aos necessitados, e deu ordem nas boticas para que, por conta dele, se aviassem remédios para os doentes que os médicos e cirurgiões declarassem serem pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua família veio a experimentar em casa falta do necessário. D. Luís de Santa Teresa deu começo ao palácio da Soledade, e concorreu para a fundação dos recolhimentos de Olinda, Iguaraçu, Afogados e Paraíba, gastando nas respectivas obras o produto de suas rendas; missionou desde Porto Calvo até ao Rio Grande do Norte. Finalmente D. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palácio, realizou diferentes melhoramentos na igreja da Sé e em várias outras igrejas, visitou grande parte da diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministério. Depois de D. Tomás dignificaram ainda aquela cadeira D. Diogo de Jesus Jardim, o esmoler, D. Azevedo Coutinho, o sábio, D. Marques Perdigão, o piedoso, o pacificador dos cabanos.
Estamos pois em 1776. É no momento em que o fogo da peste mais abrasara a província.
D. Tomás mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife e despachou, como havia feito o governador, socorros em dinheiro e víveres às povoações mais afligidas do mal. Para completo desempenho de seu dever pastoral, ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes e em todos os conventos, e convidou o povo a procissões de penitência. As procissões eram então atos majestosos e dignos. Uma delas produziu tão viva e salutar impressão no espírito do povo daquele tempo, que o historiador se julgou na obrigação de transmitir sua memória à posteridade.
Eram sete horas da noite quando esta procissão, que saiu da igreja de S. Pedro, se encaminhou à da Madre de Deus, designada para um rigoroso miserere. O bispo acompanhou-a em pessoa, descalço, e confundido com o povo. Todos, vestidos de branco, disciplinavam-se com sincera contrição.
Tendo chegado à igreja, D. Tomás subiu ao púlpito, donde sua palavra começou a cair com a singela eloqüência que a verdadeira piedade suscita e a que o amor paternal autoriza. O devoto bispo havia-se inspirado naquela passagem que um dos primeiros luminares das letras portuguesas, Fr. Luís de Sousa, nos deixou em sua imortal História de S. Domingos, e que se refere ao sermão pregado com idêntico fim pelo visitador Fr. João Furtado em Évora.
Antes que o povo começasse a dispersar-se, três penitentes, envoltos nos competentes lençóis e armados com as respectivas disciplinas, tomaram pela Rua Direita abaixo trocando a puridade entre si palavras que davam a entender acharem-se eles penetrados antes de contentamento que de contrição, sentimento que a ocasião autorizava com mais justiça a supor em sujeitos tais. Eram Joaquim, José e Teodósio como o leitor já deve ter compreendido.
Quando D. Tomás se recolheu a seu palácio achou-se roubado. José, Joaquim e Teodósio, que no momento em que ele saíra a cumprir o piedoso mister, se haviam introduzido à sorrelfa, com a facilidade que proporciona o disfarce, em uma das muitas salas ou em um dos muitos corredores desse edifício tinham tirado, na ausência do venerando proprietário, não os castiçais de prata como fizera João Valjean em casa do bispo Miriel, mas diferentes quantias que D. Tomás destinara para novos auxílios à pobreza do alto sertão mais afligida da fome do que nenhuma outra da diocese. Estas quantias achavam-se repartidas e já devidamente acondicionadas em pacotes distintos, que só esperavam oportunidade para seguirem seu destino.
O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar em seu gabinete, achou os ofícios e instruções que, com as esmolas da sua profunda piedade agora desaparecidas, dirigia aos párocos dessas longínquas e desvalidas freguesias.
No dia seguinte, muito cedinho, um cavaleiro esbarrou na vendola de Timóteo e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta, perguntou para dentro:
— Ainda está dormindo, seu Timóteo?
— Quem é você? — interrogou o vendeiro em resposta à pergunta que deixamos repetida.
— Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer.
O recém-chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de jeitos e meneios que revelavam extrema benevolência.
— Olhe, seu Timóteo; ouça-me cá. Eu sei que em sua casa está o Cabeleira com o pai e o Teodósio; e por isso corri a avisá-los. Uma tropa vem já do Recife para prendê-los. Diga a eles que se metam na capoeira enquanto é tempo.
— E como soube você disso?
— Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ela. O governador ficou muito escandalizado com o que eles fizeram ontem à noite no palácio do bispo, e diz que há de pô-los na corda mais dia menos dia. Tudo isso me contaram na venda de seu José, do pátio da Ribeira.
— Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.
— Não tem que me agradecer. Eu quis fazer este serviço ao próprio Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é muito descortês e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto Zé Gomes menino, e querendo-lhe por isso algum bem, achei que era minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão para livrar do risco o antigo conhecido. Diga-lhe isto mesmo. E até à primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancoretas no engenho da Madalena; além disso a soldadesca já deve vir bem perto no faro das cascavéis que estão no ninho.
Quando Timóteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não encontrou os três malfeitores (os quais na realidade tinham passado a noite na taverna), senão o Teodósio que, sabendo de tudo melhor do que os outros dois, os quais haviam unicamente ouvido através das portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a meter-se em uma espécie de esconderijo que arranjara em Tigipió e cuja existência era só dele conhecida.
Na época em que se passou esta história, fazia o Capibaribe adiante do Forte da Piranga, um cotovelo, que foi depois aterrado, e é hoje quintal de uma casa. O ângulo internava-se na direção do sul por entre uns lajedos alcantilados que se sumiam dentro de um capão de mato.
Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade e das sombras com que a dotara a natureza, a qual desde os Afogados até ao Peres apresenta uma face monótona e triste — uma imensa planície, coberta de capim-luca.
Por entre as lajes via-se uma vereda de gado que ia ter no engenho da Madalena ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtava quase um quarto de légua do caminho para quem tinha de ir da margem direita ao dito engenho.
O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno acidentava-se um pouco, e elevava-se ate as lajes negras pelo meio das quais o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do que o faria o homem.
No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sítio, alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dois sujeitos literalmente armados surgiram diante de seus olhos.
Vendo-se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste, o crioulo pôde unicamente dizer estas palavras:
Читать дальше