Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do corregedor. O que ele fez logo foi chamar a Viseu o sobrinho de Castro-d'Aire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento.
Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa, quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância. O morgado de Castro-d'Aire, atribuindo a frieza de sua prima a modéstia, inocência e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre daquela alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara de modo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica menina:
— É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
— Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.
O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções do fidalgo, respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima. Ainda assim, quis ele no momento persuadir-se que a boa vontade não poderia exprimir-se doutro modo, e continuou:
— Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam.
Teresa empalideceu, e baixou os olhos.
— Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! - prosseguiu Baltasar, rebatido pela desfiguração de Teresa.
— Disse-me o que é impossível fazer-se - respondeu ela sem turvação - O primo engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.
— Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? - atalhou, corrido, o morgado.
— Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não devo ser esposa dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade não seria só minha...
— Muito bem... Posso eu saber - tornou com refalsado sorriso o primo - quem é que me disputa o coração de minha prima?
— Que lucra em o saber?
— Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... E exato?
— É.
— E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?
— Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade duma filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que amava.
— Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de falar!... Quem pensaria que os seus dezesseis anos estavam tão abundantes de palavras!...
— Não são só palavras, primo - retorquiu Teresa com gravidade - são sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu lhe mentisse, ficaria mais bem vista de meu primo?
— Não, prima Teresa; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo. Ora olhe: não duvida declarar quem é o ditoso mortal da sua preferência?
— Que lhe faz saber isso?
— Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me ver vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu primo Baltasar, se o tivesse em conta de seu amigo intimo?
— Nessa conta é que eu o não posso já ter... - respondeu Teresa, sorrindo, e pausando, como ele, as sílabas das palavras.
— Pois nem para amigo me quer?!
— O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em diante meu inimigo.
— Pelo contrário... - tornou ele com mal rebuçada ironia - muito pelo contrário... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir casada com algum miserável indigno de si.
— Casada!... - interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica deste modo:
— Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados nas cadeias de Coimbra...
Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente, lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de destinar-lhe a esposa.
Ouvira Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se respondendo com altivez:
— Não tem mais que me diga, primo Baltasar?
— Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora que está falando com o namorado infeliz: convença-se de que fala com o seu mais próximo parente, mais sincero amigo, e mais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez conversava da janela com o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e tomei-o como brincadeira própria da sua idade. Como eu freqüentasse o meu último ano em Coimbra, há dois anos, conheci de sobra Simão Botelho. Quando voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico, pasmei da boa fé da priminha; depois entendi que a sua mesma inocência devia ser o seu anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda fascinada pela perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra?! Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras? Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A prima ignoraria isto porventura?
— Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua família, nem ouço falar mal dele.
— E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma de costume?
— Não sei, nem penso nisso - replicou com enfado Tereza.
— Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.
— Então o primo quer me governar!? - atalhou ela com desabrida irritação.
— Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa.
Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do diálogo. Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração e direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria muito a crise, sendo coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé de si, em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua vontade casá-la com o primo; porém, que ele já sabia que a vontade de sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai, se desse de coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvaIar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele já considerava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e a esperar que seu pai morresse, para depois ser desgraçada à sua vontade.
Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a vontade de seu pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua companhia nem a privasse a ela dos seus afetos, por medo de que sua filha praticasse alguma ação indigna, ou lhe desobedecesse no que era virtude obedecer.
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