Ficou a contemplá-las. Ah! Violante. Em súbito furor, atirou um murro à fronte rosnando: "Eu devia ter sido mais severo, mas mamãe... Encolheu os ombros e, como se lhe houvesse ocorrido uma idéia salvadora, levantou-se às pressas, abriu a gaveta do lavatório, mas ficou inerte, a olhar uma infinidade de selos esparsos. Fora ele que os arranjara com o Prates dos telegramas para a coleção que ela andava a fazer; estavam todos ali, em desordem, colados a pedaços de jornais, em fragmentos de envelopes carimbados. E cartas? Ela devia tê-las. Então, numa fúria, como um ladrão que tivesse pressa, receoso de ser surpreendido, pôs-se a abrir e a fechar gavetas que, às vezes, emperravam e, nervosamente, revolvia retalhos, papéis finos amarfanhados, ferros de frisar, cromos, grampos, alfinetes. Mas a voz lamentosa de Dona Júlia chamou-o:
— Paulo!
Rápido, atarantado, lutou para fechar a gaveta do lavatório, que resistia, empenada, meteu-lhe o peito e, com um impulso fonte, com o qual tremeram, tilintando, a louça e os cristais, levou-a ao fundo, saindo imediatamente. Dona Júlia limpava os olhos.
— Paulo! repetiu.
— Que é, mamãe?
— E agora, meu filho, que havemos de fazer? - Ele pôs-se a torcer a toalha da mesa, sem dizer palavra. - Então essa gente da polícia não pode salvar uma moça?
— Que hão de eles fazer, mamãe? Quem sabe lá! O delegado prometeu interessar-se por ela. Mas a senhora sabe que também não é assim, de uma hora para outra. Eles vão procurar.
— E então?
— Se encontrarem obrigarão o homem a casar, seja ele quem for. Não há outra coisa a fazer.
— Ah! meu filho... E se for um ricaço? O dinheiro vence tudo. Os ricos governam e a minha pobre filha é que fica para aí, perdida. Tu conheces tanta gente, Paulo... Tem pena de mim. Tem pena de tua irmã.
E a pobre velha, de mãos postas, soluçando, deixou-se cair de joelhos, a implorar.
— Tem, Paulo, tem pena de mim. Que vergonha, meu filho! - e inclinou-se, com o rosto nas mãos, os cotovelos fincados na cadeira. Paulo levantou-a:
— Eu farei tudo. mamãe; descanse. Nem conto com a polícia. Eu mesmo vou procurar Violante.
— Sim, meu filho; ela é tua irmã! Nem sabe o passo que deu. - Nervosa, trêmula, arrastando-se para o quarto, pôs-se a dizer: Nem eu sei com que cara hei de aparecer amanhã a essa gente da vizinhança.
Paulo já havia entrado no quarto quando ouviu o baque de um corpo. Precipitou-se, sobressaltado, e foi achar a mãe de joelhos, com a cabeça derreada, de mãos postas, exorando as imagens. Retrocedeu em pontas de pés, com um respeito sagrado e tornou ao seu quarto, na sala de visitas. Felícia, sentada no tapete, as pernas esticadas, os pés hirtos, ressonava. A porta estava entreaberta. Entrou, deu luz ao gás e, diante da estante atochada de livros, desabafou, colérico:
— Cínica! E tudo por vaidade. É a mania do luxo. Uma moça pobre, que não pensava em outra coisa senão em vestir-se... E eu que morresse! E a pobre velha que se estafasse! Ah! coisa nojenta!
Encontrou-se à mesa, onde tinha o retrato da família, num quadro: o pai, a mãe, ele, ela: pequenina, de vestido curto, com uma boneca nos braços, recaída sobre o colo de Dona Júlia, ainda moça e forte. Tomou o quadro e pôs-se a contemplá-lo e, de novo, os olhos se lhe encheram d'água.
O pai, muito severo, de pé, apoiado à espada, fitava-o duramente, como se o responsabilizasse por aquele fato que deslustrava o nome que ele havia, com tanto brio, honrado na guerra e na paz, legando-o puro aos filhos.
E Paulo, com um tremor nervoso, como se efetivamente aquela figura, animada por milagre, lhe falasse, pôs-se a dizer baixinho, em sussurro: "Meu pobre pai! Meu pobre pai!" Mas os seus olhos, empanados pelo pranto, buscavam a criança inocente que ali estava, linda e pura, com os cachos dos cabelos muito negros, confundidos com os bucres louros da boneca.
Depois o quadro e, acendendo um cigarro, sentou-se na cama e ia tirar as botinas que, com a umidade, se lhe haviam colado aos pés, quando ouviu os passos arrastados de Dona Júlia. A velha empurrou a porta e entrou, d'olhos muito abertos, a arquejar, e foi logo perguntando:
— Tu falaste no soldado? Quem sabe se não foi ele? - Paulo encolheu os ombros e a velha, sentando-se, continuou: Eu não atino com outra pessoa. Se não foi o soldado, foi alguém da Estrada de Ferro.
— Qual da Estrada de Ferro!
Depois de uma pausa, ela insistiu:
— Para mim, foi o soldado. Eu, se fosse você, ia de manhã ao quartel.
Paulo explodiu:
— Pois mamãe acha lá possível que Violante, vaidosa como é, saísse de casa com um soldado?!
— Quem sabe, meu filho!
— Ora!... Ela não deu esse passo por amor. Violante não quer bem a ninguém, nem à senhora, acredite. Se ela lhe tivesse um pouco de amizade, não saía de casa, como saiu, deixando-a de cama. Aquilo é a criatura mais indiferente que eu conheço. Se mamãe tivesse ouvido os meus conselhos, não estava agora aí chorando.
— Ora, Paulo... tinha de acontecer.
— Ah! Tinha de acontecer?... Não, não aconteceria se a senhora não lhe passasse tanto a mão pela cabeça. Que fazia Violante aqui em casa? Era uma princesa: Dormia até as tantas e passava os dias polindo as unhas ou colecionando folhetins dos jornais. Se a senhora a obrigasse a coser e a arrumar a casa não aconteceria o que aconteceu. Mas ninguém tocasse em dona Violante!
— Está bom, não queiras agora culpar-me. Eu fazia tudo isso porque sou mãe.
— Porque é mãe... Pois sim. E eu agora que deixe os meus afazeres e que ande por aí, envergonhado, à procura da senhora minha irmã. - Levantou-se indignado: Eu não ponho mais os pés na Escola! Essas coisas sabem-se logo e eu não tenho cara para aparecer aos colegas. "É irmão de fulana, que fugiu." Eu não! - Voltou-se repentinamente para a velha, carrancudo: Olhe, nós estamos aqui aflitos. E ela?...
— Sabe Deus se já não está arrependida! - suspirou a velha.
— Arrependida! Ela fez tudo com calma, levou todas as jóias.
— Levou!?
— Sim senhora, levou! - A mísera inclinou a cabeça sobre o colo com um suspiro; e Paulo continuou: E ainda a senhora quer desculpá-la. Uma perversa!
— Não fales assim.
— Que é, então? Que lhe faltava aqui? Tinha até demais! Luxo?! - Exclamou curvando-se, com a face contraída, os olhos flamejantes, as mãos espalmadas nas coxas: Ah! Isso não, porque eu não havia de roubar. Isso não! - E pôs-se a passear pelo quarto. Desabafava. A sua cólera contida transbordava e, como na expansão duma válvula há o vapor que se liqüefaz, havia naquela fúria lágrimas disfarçadas; era o pranto que irrompia da cólera e a atitude infeliz de Dona Júlia concorria poderosamente para aquela fraqueza. Tomou, ao acaso, um livro na estante, folheou-o vagamente e, atirando-o à mesa, prorrompeu de novo: Quantas vezes protestei contra aquela mania da janela? Diga! Uma pouca-vergonha. As outras moças chegam à janela, é verdade, mas Violante era desde a manhã até as tantas da noite, todos os dias, até com chuva. Nem sei que parecia. E a senhora? A senhora sempre a defendê-la, porque era moça. Está aí.
— Mas tu queres agora culpar-me, Paulo? Eu podia ver?
— Justamente por isso.
— Ora, meu filho, se ela tinha essa idéia nem que eu ficasse agarrada à sua saia noite e dia havia de levá-la a efeito. Tinha de acontecer e quando Deus quer...
— Deus! Aí vem a senhora com Deus. Pois sim. Eu é que não sei como há de ser agora.
— O quê?
— A minha vida. Tenho o jornal... Da Escola não falo, porque lá não ponho mais os pés.
— Então não te formas?
— Eu? Eu, não! Mas não sei como há de ser. Como poderei cuidar das minhas obrigações tendo de andar por aí à procura de Violante? Não sei.
Читать дальше