Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas coisas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.
Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero, entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua idéia. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.
Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a área já limpa.
— Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de mato.
A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas coisas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! Seguira-o ao "Sossego" e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador.
— Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as coisas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...
— Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.
Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.
Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do galinheiro:
— Já nasceram os patos, Adelaide?
— Ainda não. Faltam oito dias ainda.
E logo a irmã acrescentava:
— Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?
— Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... Mando um leitão e um peru.
— Ora, tu! Que presente!
— Que é que tem? É da tradição.
Justamente estavam nesse dia assim a conversar as dois irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.
Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo, esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho preto.
Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.
— Boas tardes, major.
— Boas tardes. Faça o favor de entrar.
O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que havia nele de estranho, era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo que todo ele engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis. O visitante falou:
— Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...
— Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.
— Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem nenhuma exigência legal.
O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e continuou.
— Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incomodá-lo... Não é coisa de importância... Creio que o major...
— Oh! Por Deus, tenente!
— Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.
— Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...
— Uma coisa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.
— É justo.
— O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...
— Não. Espere um pouco...
— Oh! major, não se incomode, Não é pra já.
Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:
— Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?
— Muito bem.
— Pretende dedicar-se à agricultura?
— Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
— Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta, quanta farinha! As terras estão cansadas e...
— Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é cultivada há milhares de anos, entretanto...
— Mas lá se trabalha.
— Por que não se há de trabalhar aqui também?
— Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...
— Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.
— O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados...
Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.
— Que questão é? indagou Quaresma.
O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:
— Então não sabe?
— Não.
— Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás - apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influência... Que pensa o senhor?
— Eu... Nada!
O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo, este malandro quer ficar bem com os dois, para depois arranjar-se sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele "estrangeiro", que vinha não se sabe donde!
— O major é um filósofo, disse ele com malícia.
— Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.
Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão, mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a fisionomia e disse em ar de despedida:
— Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?
— Decerto.
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