Coleoni era o procurador do major, mas não sendo entendido em coisas oficiais, entregou ao Coração dos Outros aquela parte do seu mandato.
Graças à popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a resistência da máquina burocrática e a liquidação estava anunciada para breve.
Foi isso que ele anunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da filha. Pediram, tanto ele como Dona Adelaide, notícias do amigo e do irmão.
A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou compreendendo melhor; mas o sentira profundamente com o sentimento simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.
Ricardo Coração dos Outros gostava do major, encontrara nele certo apoio moral e intelectual de que precisava. Os outros gostavam de ouvir o seu canto, apreciavam como simples diletantes; mas o major era o único que ia ao fundo da sua tentativa e compreendia o alcance patriótico de sua obra.
De resto, ele agora sofria particularmente - sofria na sua glória, produto de um lento e seguido trabalho de anos. É que aparecera um crioulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já era citado ao lado do seu.
Aborrecia-se com o rival, por dois fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por causa das suas teorias.
Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via no fato de haver um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia diminuir ainda mais o prestígio do instrumento. Se o seu rival tocasse piano e por isso ficasse célebre, não havia mal algum; ao contrário: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermédio do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralizava o misterioso violão que ele tanto estimava. E além disso com aquelas teorias! Ora! Querer que a modinha diga alguma coisa e tenha versos certos! Que tolice!
E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim diante dele como um obstáculo imprevisto na subida maravilhosa para a sua glória. Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar a sua superioridade indiscutível; mas como?
A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em coisas francesas... Pensou num jornal, O Violão, em que ele desafiasse o rival e o esmagasse numa polêmica.
Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma, atualmente recolhido ao hospício, mas felizmente em via de cura, A sua alegria foi justamente quando soube que o amigo estava melhor.
— Não pude ir hoje, disse ele, mas irei domingo. Está mais gordo?
— Pouca coisa, disse a moça.
— Conversou bem, acrescentou Coleoni. Até ficou contente quando soube que Olga ia casar-se.
— Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns.
— Obrigada, fez ela.
— Quando é, Olga? perguntou Dona Adelaide.
— Lá para o fim do ano... Tem tempo...
E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações sobre o casamento.
E ela se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as considerações, impudentes e irritantes; queria fugir à conversa, mas voltavam ao mesmo assunto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide, mais loquaz e curiosa que comumente. Esse suplício que se repetia em todas as visitas, quase a fazia arrepender-se de ter aceitado o pedido. Por fim, achou um subterfúgio, perguntando:
— Como vai o general?
— Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Ele deve andar bem, a Ismênia é que anda triste, desolada - coitadinha!
Dona Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da filha do general. Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara para o interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem uma carta nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação mais séria de energia mental e física, sentia-o muito, como coisa irremediável que absorvia toda a sua atenção.
Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir. Arranjar outro era problema insolúvel, era trabalho acima de suas forças. Coisa difícil! Namorar, escrever cartinhas, fazer acenos, dançar, ir a passeios - ela não podia mais com isso. Decididamente, estava condenada a não se casar, a ser tia, a suportar durante toda a existência esse estado de solteira que a apavorava. Quase não se lembrava das feições do noivo, dos seus olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente ósseo; independente da memória dele, vinha-lhe sempre à consciência, quando, de manhã, o estafeta não lhe entregava carta, essa outra idéia: não casar. Era um castigo... A Quinota ia casar-se, o Genelício já estava tratando dos papéis; e ela que esperara tanto, e fora a primeira a noivar-se, ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos estavam contentes com aquela fuga inexplicável de Cavalcânti. Como eles se riam durante o carnaval! Como eles atiraram aos seus olhos aquela viuvez prematura, durante os folguedos carnavalescos! Punham tanta fúria no jogo de confetes e bisnagas, de modo a deixar bem claro a felicidade de ambos, aquela marcha gloriosa e invejada para o casamento, em face do seu abandono.
Ela disfarçava bem a impressão da alegria deles que lhe parecia indecente e hostil; mas o escárnio da irmã que lhe dizia constantemente: "Brinca, Ismênia! Ele está longe, vai aproveitando" - metia-lhe raiva, a raiva terrível de gente fraca, que corrói interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.
Então, para espantar os maus pensamentos, ela se punha a olhar o aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as serpentinas irisadas pendentes nas sacadas, mas o que fazia bem à sua natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquele ruído de atabaques, e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa barulheira, o seu pensamento repousava e como que a idéia que a perseguia desde tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.
De resto, aqueles vestuários extravagantes de índios, aqueles adornos de uma mitologia francamente selvagem, jacarés, cobras, jabutis, vivos, bem vivos, traziam à pobreza de sua imaginação imagens risonhas de rios claros, florestas imensas, lugares de sossego e pureza que a reconfortavam.
Também aquelas cantigas gritadas, berradas, num ritmo duro e de uma grande indigência melódica, vinham como reprimir a mágoa que ia nela, abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de gritos, mas para o que não lhe sobrava força bastante e suficiente.
O noivo partira um mês antes do carnaval e depois do grande festejo carioca a sua tortura foi maior. Sem hábito de leitura e de conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar. Era-lhe doce chorar.
Nas horas da entrega da correspondência, tinha ainda uma alegre esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e, voltava ao seu pensamento: não casar.
Dona Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismênia, comentou:
— Merecia um castigo isso, não acham?
Coleoni interveio com brandura e boa vontade:
— Não há razão para desesperar. Há muita gente que tem preguiça de escrever...
— Qual! fez Dona Adelaide. Há três meses, Senhor Vicente!
— Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.
— E ela ainda o espera, Dona Adelaide? perguntou Olga.
— Não sei, minha filha. Ninguém entende essa moça. Fala pouco, se fala diz meias palavras... É mesmo uma natureza que parece sem sangue nem nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.
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