— Você quer voar?
— Não.
— Porquê?
— Eu digo-lhe: nenhum de nós teria voado se tivesse sabido. Mas ninguém sabe como é. Ninguém que lá não tenha estado. Nós éramos um grupo de animais mortalmente assustados, desesperados.
— Como concilia isso com o que disse há um momento?
— Não concilio. As coisas são como são. Nós tinhamos medo. Doutor, enquanto andei em órbita à volta daquele sol, à espera de Arder, imaginei diversas pessoas e falei com elas. Falei por mim próprio e por elas e quase no fim convenci-me de que estavam realmente ali comigo. Cada uma se salvou o melhor que sabia e podia. Pense nisso, doutor. Estou aqui sentado à sua frente. Aluguei uma vila, comprei um automóvel antigo e quero; prender, ler e nadar. Mas tenho tudo aquilo dentro de mim. O espaço, juele silêncio… e como o Venturi gritou por socorro e eu, em vez de o salvar, fiz marcha a trás a toda a velocidade!
— Porquê?
— Estava a pilotar o Prometheus e a bateria dele avariou-se. Ele podia ter-nos atirado a todos pelos ares. Mas não explodiu; não explodiria. Talvez tivéssemos tido tempo de o safar, mas eu não tinha o direito de arriscar. Depois, com Arder, foi ao contrário. Eu queria salvá-lo, mas Gimma ordenou-me que regressasse, pois tinha medo de que morressemos ambos.
— Bregg… diga-me, que esperavam todos de nós? Da Terra?
— Não faço ideia. Nunca pensei nisso. Era como alguém a falar do mundo depois deste ou do Céu: aconteceria, mas nenhum de nós sabia imaginar como seria. Quero perguntar-lhe uma coisa: Que é, ao certo, essa… betrização?
— Que sabe a esse respeito?
Contei-lhe, mas não lhe disse como nem através de quem obtivera o conhecimento.
— Sim, é mais ou menos isso no conceito popular.
— E eu…?
— A lei abre uma excepção no vosso caso, porque a betrização de adultos pode afectar a saúde e ser até perigosa. Além de que se considera — e justamente, na minha opinião — que passaram num teste de… atitude moral. E, de qualquer modo, são tão poucos…
— Mais uma coisa, doutor. Mencionou mulheres. Porque me disse isso? Mas talvez esteja a roubar-lhe muito tempo…
— Não, não está. Porque lhe disse isso? Com quem pode um homem ser íntimo. Bregg? Com os seus pais. Os seus filhos. Amigos. Uma mullier. Você não tem pais nem filhos e nào pode ter amigos.
— Porquê?
— Não pensei nos seus camaradas, embora não saiba se desejaria estar constantemente na sua companhia, para recordar…
— Não. meu Deus! Nunca!
— Portanto… Conhece duas eras. Na primeira consumiu a sua juventude, e à segunda aprenderá a conhecê-la em breve. Se incluir-mos esses dez anos. a sua experiência não poderá ser comparada com a de pessoas da sua idade. Não poderá estar em pé de igualdade com elas. Que fazer então? Viver entre velhos? Restam as mulheres. Bregg. Só as mulheres.
— Talvez só uma — murmurei.
— Ah. só uma é difícil, hoje em dia!
— Porquê?
— Vivemos num período de prosperidade. Traduzido na linguagem dos assuntos sexuais isso significa: arbitrariedade. Nào se podem comprar amor ou mulheres por… dinheiro. Os factores materiais deixaram de existir aqui.
— E chama a isso arbitrariedade? Doutor!
— Sim. Pensa sem diivida, já que falei de comprar amor, que me refiro à prostituição, oculta ou às claras. Mas não. Isso agora pertence ao passado distante. Outrora, o êxito costumava atrair as mulheres. Um homem podia impressionar uma mulher com o seu salário, com as suas qualificações profissionais, com a sua posição social… Numa sociedade igualitária isso não é possível… com uma ou duas excepções. Se. por exemplo, você fosse um realista…
— Mas eu sou um realista.
O doutor sorriu.
— A palavra tem agora outro significado. Um realista é um actor que aparece no real. Já foi ao real.
— Não.
— Assista a uns dois melodramas e compreenderá quais são hoje os critérios de selecção sexual. A coisa mais importante é a juventude. É por isso que todos lutam tanto por ela. Rugas e cabelos brancos, sobretudo quando prematuros, evocam os mesmos sentimentos que a lepra suscitava, há séculos…
— Mas porquê?
— É difícil para si compreender. Mas os argumentos baseados na razão são impotentes contra os costumes prevalecentes. Não se apercebe de quantos factores, outrora decisivos na esfera erótica, desapareceram. A natureza detesta o vácuo e. por isso tiveram de ser criados outros factores para os substituir. Considere, por exemplo, qualquer coisa a que se habituou, qualquer coisa a que se habituou de tal modo que deixou de ver a natureza excepcional do fenómeno: o risco. Já não existe, Bregg. Um homem não pode impressionar uma mulher com actos heróicos, com façanhas tenerárias: no entanto, a literattira, a arte, toda a nossa cultura de séculos foi alimentada por essa corrente: o amor perante a adversidade. Orfeu foi para Hades por Eurídice. Otelo matou por amor. A tragédia de Romeu e Julieta… Hoje não há tragédia nenhuma. Nem sequer a sua possibilidade. Eliminámos o inferno da paixão e depois verificámos que, com o mesmo gesto, fizemos com que o paraíso deixasse também de existir. Agora é tudo morno, Bregg.
— Morno?
— Sim. Sabe o que fazem até os amantes mais infelizes? Comportam-se razoavelmente, sensatamente. Nada de impetuosidade, de rivalidade…
— Quer dizer que tudo isso desapareceu?
Senti pela primeira vez uma espécie de medo supersticioso deste mundo. O velho médico ficou calado.
— Não é possível, doutor. Deveras?
— Sim, deveras. E deve aceitá-lo, Bregg, como aceita o ar, a água. Disse que era difícil ter só uma mulher. Para uma vida inteira é praticamente impossível. A duração média de um casamento é de cerca de sete anos. E isso já representa um progresso. Há meio século era menos de quatro anos…
— Doutor, não quero roubar-lhe tempo. Que me aconselha a fazer?
— O que já disse antes: restaure a cor original do seu cabelo. Parece banal, bem sei, mas é importante. Sinto-me embaraçado ao dar-lhe semelhante conselho. Embaraçado não por mim… Mas que posso eu…?
— Obrigado. Sinceramente. Uma única coisa: diga-me, que ar tenho eu na rua? Que pareço às pessoas na rua? Que há em mim…?
— Bregg, você é diferente. Primeiro, há o seu tamanho. Parece uma coisa tirada da Ilíada. Proporções antediluvianas. Poderia ser até uma oportunidade, mas você conhece, não conhece, o destino dos que são muito diferentes?
— Conheço.
— É um pouco grande de mais. Não me lembro de gente desse tamanho, nem mesmo na minha juventude. Agora parece um homem muito alto, terrivelmente vestido, mas isso não se deve ao facto de as roupas lhe assentarem mal e, sim, ao de ser incrivelmente musculoso. Também o era antes da viagem?
— Não, doutor. Foram os dois gs…
— E possível. Sele anos. Sele anos de peso duplo. Os meus músculos tiveram de alargar, os respiratórios e os abdominais, e o tamanho do meu pescoço também. Se não fosse assim, leria sufocado como um rato. Os músculos trabalhavam mesmo enquanto eu dormia. Até na hibernação. Pesava o dobro. Foi essa a razão.
— Os outros também? Desculpe perguntar, é a minha curiosidade médica… A vossa foi a expedição mais longa que se fez.
— Bem sei. Os outros? Olaf é muito semelhante a mim. Depende sem dúvida do esqueleto. O meu foi sempre grande. Arder era maior. Mais de dois metros. Sim, o Arder… Que estava eu a dizer? Os outros… bem, eu era o mais novo e, portanto, o mais apto a adaptar-me melhor. Pelo menos era isso que o Venturi dizia… Está familiarizado com a obra de Janssen?
— Se estou familiarizado? É um clássico para nós, Bregg.
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