Herbert Wells - A Máquina do Tempo

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Um cientista constrói a primeira máquina de viajar no Tempo e com ela percorre as diversas etapas da civilização humana, até chegar ao longínquo futuro, que ele supõe ser a Idade de Ouro da humanidade. O homem venceu a Natureza e o mundo inteiro é um jardim. O trabalho, as doenças, a guerra, a competição econômica e social parecem ter desaparecido. A nova raça vive exclusivamente para o amor e a diversão, ninguém envelhece.
Mas como funciona essa sociedade? Quem a sustenta? De onde vêm os belos tecidos com que todos se vestem? E que são, ou quem são, esses animais noturnos que os habitantes do Mundo Superior tanto temem?
Pouco a pouco, o Viajante do Tempo toma contato com a verdadeira realidade desse mundo do futuro, que de risonho e bucólico se converte num cenário de pesadelo. O encontro com a bela e frágil Weena vai transformar completamente sua visão do ano 802.701 da era cristã, e as duas flores que traz na volta provarão que essa espantosa viagem não foi apenas um sonho. A Máquina do Tempo, que consagrou H. G. Wells e lhe deu renome mundial, é considerado, juntamente com A Guerra dos Mundos, uma das pedras angulares da literatura de antecipação e da ficção científica. Obra ao mesmo tempo lírica e polêmica, inspirou numerosos livros nas mais diversas línguas.
A tradução que apresentamos, de Fausto Cunha, sobre o texto integral e definitivo, foi feita especialmente para a Coleção Mundos da Ficção Científica.

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Herbert George Wells

A Máquina do Tempo

CAPÍTULO 1

O Viajante do Tempo (como o chamaremos por uma questão de conveniência) expunha-nos um intrigante problema. Seus olhos cinzentos e brilhantes faiscavam e seu rosto, habitualmente pálido, se inflamava de animação. Na lareira as brasas ardiam vivamente e a luz suave das lâmpadas incandescentes no candelabro de lírios de prata refletia-se nas bolhazinhas que se formavam e desmanchavam dentro de nossos copos. As poltronas, cujo desenho era de nosso próprio anfitrião, envolviam-nos num abraço acariciante, em vez de apenas servirem de assento. Estávamos imersos nessa deliciosa atmosfera de depois do jantar, quando os pensamentos vagueiam preguiçosamente, libertos do rigor da precisão. O Viajante do Tempo, pontuando suas palavras com o dedo magro em riste, explicava-nos o caso, enquanto nós, recostados às nossas poltronas, admirávamos sua maneira apaixonada e engenhosa de desenvolver o que, então, nos parecia mais um de seus paradoxos.

— Prestem bem atenção. Vou contestar uma ou duas idéias que são universalmente aceitas. Assim, por exemplo, a geometria que nos ensinaram na escola e que é baseada numa concepção errônea.

— Não estaremos começando num nível muito alto? — perguntou Filby, um ruivo que gostava de discutir.

— Não me proponho a pedir-lhes que aceitem seja o que for sem um fundamento racional. Logo vocês estarão concordando comigo. Sabem, naturalmente, que uma linha matemática, uma linha de espessura zero, não tem existência real. Não lhes ensinaram isso? Da mesma forma, um plano matemático. Essas coisas são meras abstrações.

— Perfeitamente — disse o Psicólogo.

— Também um cubo, tendo apenas comprimento, largura e altura, não pode ter existência real.

— A isso oponho uma objeção — disse Filby. — Por certo que um corpo sólido pode existir. Todas as coisas reais. .

— É o que pensa a maioria das pessoas. Mas, espere um momento. Pode existir um cubo instantâneo?

— Não percebo — disse Filby.

— Pode ter existência real um cubo que não dure por nenhum espaço de tempo?

Filby ficou pensativo.

— Não há dúvida — continuou o Viajante do Tempo — que todo corpo real deve estender-se por quatro dimensões: deve ter Comprimento, Largura, Altura e… Duração. Mas, por uma natural imperfeição da carne, que logo lhes explicarei, somos inclinados a desprezar esse fato. Há realmente quatro dimensões, três das quais são chamadas os três planos do Espaço, e uma quarta, o Tempo. Existe, no entanto, uma tendência a estabelecer uma distinção irreal entre aquelas três dimensões e a última, porque acontece que nossa consciência se move descontinuamente numa só direção ao longo do Tempo, do princípio ao fim de nossas vidas.

— Isso — falou um rapaz que fazia enormes esforços para reacender seu charuto à chama de uma lâmpada — isso… de fato. . muito claro.

— Mas é surpreendente que uma coisa assim tão clara seja constantemente esquecida — continuou o Viajante do Tempo, com um laivo de bom humor na voz. — Realmente é isso o que significa a Quarta Dimensão, embora algumas pessoas quando falam na Quarta Dimensão não saibam o que estão dizendo. É apenas outra maneira de encarar o Tempo. Não existe diferença entre o Tempo e qualquer das três dimensões do Espaço, exceto que nossa consciência se move ao longo dele. Alguns tolos, porém, pegaram essa idéia pelo lado errado. Todos vocês, decerto, já escutaram o que eles vivem a dizer a respeito da Quarta Dimensão, não?

— Eu não — confessou o Prefeito Provincial.

— É muito simples. Esse Espaço, tal como o entendem os nossos matemáticos, é considerado como tendo três dimensões, que podemos chamar Comprimento, Largura e Altura, e é sempre definível em referência a três planos, cada um em ângulo reto com os outros. Mas alguns espíritos filosóficos têm indagado por que hão de ser necessariamente três dimensões — por que não mais uma direção em ângulo reto com as três outras — e experimentaram construir uma Geometria Quadridimensional. Faz pouco mais de um mês, o Professor Simon Newcomb fez uma exposição nesse sentido perante a Sociedade Matemática de Nova York. Sabemos como, sobre uma superfície plana, que tem apenas duas dimensões, podemos representar a figura de um sólido tridimensional. De igual forma, esses pensadores acham que, por meio de modelos de três dimensões, eles poderiam representar um de quatro — se conseguissem dominar a perspectiva da coisa. Compreenderam?

— Penso que sim — murmurou o Prefeito Provincial e, carregando o cenho, mergulhou num estado de meditação, movendo os lábios como se repetisse palavras místicas. — Sim, penso que agora compreendo — falou após algum tempo, e seu rosto se iluminou momentaneamente.

— Não vejo por que não lhes dizer que, de um certo tempo para cá, tenho trabalhado nessa geometria de Quatro Dimensões. Alguns de meus resultados são curiosos. Por exemplo: eis aqui o retrato de um homem aos oito anos, outro retrato aos quinze, outro aos dezessete, outro aos vinte e três, e assim por diante. Todos são evidentemente seções, vale dizer, representações tridimensionais dessa criatura quadridimensional, que é fixa e inalterável.

O Viajante do Tempo fez uma pausa, a fim de que os circunstantes pudessem assimilar o que ele dissera. Depois prosseguiu:

— Os homens de ciência sabem perfeitamente que o Tempo é apenas uma forma de Espaço. Eis aqui um diagrama que vocês todos conhecem, um registro meteorológico. Esta linha que eu sigo com o meu dedo mostra o movimento do barômetro. Ontem ele subiu até aqui, à noite baixou, hoje pela manhã voltou a subir, chegando aos poucos até aqui. Por certo que o mercúrio não traçou esta linha em nenhuma das dimensões do Espaço geralmente conhecidas, não é mesmo? Mas não resta dúvida de que traçou uma linha e essa linha, não há como deixar de concluir, foi traçada ao longo da Dimensão-Tempo.

— Mas — disse o Médico, olhando fixamente para uma brasa na lareira — se o Tempo é apenas uma quarta dimensão do Espaço, por que tem sido sempre e continua sendo considerado algo diferente? E por que não podemos deslocar-nos no Tempo como nos deslocamos nas outras dimensões do Espaço?

O Viajante do Tempo sorriu.

— Tem certeza de que nos podemos deslocar livremente no Espaço? Podemos andar com bastante liberdade da direita para a esquerda, para frente e para trás, e os homens sempre o fizeram. Admito que nos movemos livremente em duas dimensões. Mas, e para cima e para baixo? Aí a gravidade já nos impõe limites.

— Não exatamente — objetou o Médico. — Há os balões.

— Mas antes dos balões, e excetuados os curtos saltos em altura ou os pulos e quedas em conseqüência das desigualdades do terreno, nunca tivemos liberdade de movimento vertical.

— No entanto, podemos mover-nos um pouco para cima e para baixo — insistiu o Médico.

— Mais facilmente, muito mais facilmente para baixo do que para cima.

— E não podemos deslocar-nos de forma alguma no Tempo. Estamos confinados ao momento presente.

— Meu caro amigo, é justamente aí que você está errado. É justamente aí que o mundo inteiro tem estado errado. Estamos saindo a cada instante do momento presente. Nossa existência mental, que é imaterial e não tem dimensões, desloca-se ao longo da Dimensão-Tempo com uma velocidade uniforme, do berço ao túmulo. Da mesma forma que viajaríamos para baixo se começássemos nossa existência cinqüenta milhas acima da superfície da terra.

— Mas a grande dificuldade é a seguinte — interrompeu o Psicólogo. — Podemos mover-nos em todas as direções do Espaço, mas não podemos fazer o mesmo no Tempo.

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