De repente, tudo pareceu tão ridículo. Era como se ela estivesse jogando um triste jogo em que se vestia elegantemente. Mas na realidade, ela era apenas mais uma patética dona de casa esperando que seu homem voltasse para casa e desse à sua vida algum sentido.
Ela pegou os pratos e caminhou até à cozinha, onde colocou as duas refeições no lixo, peixe inteiro e tudo. Ela foi se trocar, vestindo roupa confortável. Depois disso, voltou para a sala de jantar, agarrou na garrafa aberta de Shiraz, encheu um copo até à borda e deu um gole enquanto caminhava para a sala de estar.
Ela se atirou para o sofá, ligou a TV, se acomodando para ver o que parecia ser uma maratona de Life Below Zero, uma série de reality sobre pessoas que viviam voluntariamente em áreas remotas do Alasca. Ela justificou dizendo a si mesma que isso a ajudaria a apreciar que tinha pessoas que viviam muito pior do que ela em sua casa chique na Califórnia do Sul, com seu vinho caro e sua televisão de tela plana de setenta polegadas.
Por volta do terceiro episódio e da meia garrafa vazia, ela adormeceu.
*
Ela foi acordada por Kyle lhe chacoalhando suavemente o ombro. Olhando para cima através de seus olhos embaçados, ela entendeu que ele estava um pouco embriagado.
“Que horas são?”, ela murmurou.
“Onze e pouco.”
“O que aconteceu para você não estar em casa às nove?”, ela perguntou.
“Eu fiquei retido”, ele disse timidamente. “Preste atenção, querida. Eu sei que deveria ter ligado antes. Isto não se faz. Lamento mesmo.”
“Tudo bem” disse ela. Ela tinha a boca seca e lhe doía a cabeça.
Ele passou um dedo ao longo do braço dela.
“Eu gostaria de fazer as pazes com você”, ele propôs sugestivamente.
“Hoje não, Kyle”, disse ela, afastando a mão dele enquanto se levantava. “Eu não estou com disposição. Nem um pouco. Talvez da próxima vez você possa tentar não me fazer sentir como se eu fosse sua segunda escolha. Vou para a cama.”
Ela subiu as escadas e, apesar da vontade de olhar para trás para ver a reação dele, continuou sem dizer mais nada. Kyle não disse nada. Ela se arrastou para a cama sem sequer desligar a luz. Apesar da dor de cabeça e da boca seca, ela adormeceu em menos de um minuto.
*
Jessie sentiu um ramo espinhento lhe arranhar o rosto enquanto corria pela floresta escura. Era inverno e ela sabia que, mesmo descalça, seus passos, pisando as folhas caídas e secas que cobriam a neve, eram barulhentos; que ele provavelmente os ouviria. Mas ela não tinha escolha. Sua única esperança era continuar a correr e esperar que ele não conseguisse a encontrar.
Mas, ao contrário dele, ela não conhecia bem a floresta. Ela estava correndo às cegas, completamente perdida e procurando qualquer referência familiar. Suas pequenas pernas eram demasiado pequenas. Ela sabia que ele se estava aproximando. Ela conseguia ouvir seus passos pesados e sua respiração ainda mais pesada. Ela não tinha onde se esconder.
Jessie se sentou na cama, acordando a tempo de ouvir seu próprio grito. Ela demorou um pouco para se orientar e entender que estava em sua própria cama em Westport Beach, vestindo as roupas com as quais ela tinha adormecido bêbada na noite anterior.
Seu corpo estava todo coberto de suor e sua respiração era superficial. Ela pensou que estava mesmo a ouvir o sangue a correr em suas veias. Ela levou a mão até sua bochecha esquerda. A cicatriz do galho ainda estava lá. Já não se notava tanto e poderia ser quase toda escondida com maquiagem, ao contrário da cicatriz mais longa em sua clavícula direita. Mas ela ainda conseguia sentir sua saliência. Até mesmo agora, ela quase que conseguia sentir a espetada afiada.
Ela olhou para a esquerda e viu que a cama estava vazia. Ela percebeu que Kyle tinha dormido lá porque seu travesseiro estava recuado e os lençóis estavam todos bagunçados. Mas ela não sabia onde ele estava. Ela tentou ouvir o som do chuveiro, mas a casa estava em silêncio. Olhando para o relógio da cabeceira, ela viu que eram 7h45 da manhã. A esta hora ele já teria saído para o trabalho.
Ela saiu da cama, tentando ignorar sua cabeça latejante enquanto se arrastava para o banheiro. Depois de um banho de quinze minutos, metade do tempo gasto simplesmente sentada nos ladrilhos frios, ela se sentiu pronta para se vestir e descer. Na cozinha, ela viu uma nota colocada na mesa do café. Dizia “Desculpa novamente pela noite passada. Adoraria uma outra oportunidade quando você estiver com disposição. Te amo.”
Jessie deixou-o de lado e preparou um pouco de café e aveia, a única coisa de que se sentia capaz de comer agora. Ela conseguiu terminar meia tigela, jogou o resto no lixo e caminhou até à sala de estar da frente, onde uma dúzia de caixas fechadas esperava por ela.
Ela se acomodou no sofá de dois lugares com uma tesoura, colocou o café na mesa de apoio e puxou uma caixa em sua direção. Enquanto ela, distraída, ia vendo o que estava nas caixas, eliminado os itens à medida que os localizava, sua mente viajou para sua tese da DNR.
Se não fosse pela briga deles, Jessie quase certamente teria contado a Kyle não apenas sobre suas iminentes aulas práticas na instituição, mas também sobre as conseqüências de sua tese original, incluindo seu interrogatório. Isso teria sido uma violação de seu Acordo de Confidencialidade.
Ele obviamente conhecia as linhas gerais, uma vez que ela tinha discutido o projeto com ele enquanto fazia a pesquisa. Mas o Painel tinha feito com que ela jurasse segredo sobre o assunto depois, até mesmo do marido.
Parecia estranho esconder de seu parceiro uma parte tão importante de sua vida. Mas tinham garantido a ela que tal era necessário. E para além de algumas perguntas gerais sobre como as coisas tinham acontecido, ele, na verdade, não a pressionava sobre o assunto. Algumas respostas vagas o deixavam satisfeito, o que tinha sido um alívio na época.
Mas ontem, com seu entusiasmo pelo o que tinha feito - visitar um hospital psiquiátrico para assassinos - numa situação sem precedentes, ela estava preparada para finalmente o pôr a par das coisas, apesar da proibição e de suas conseqüências. Se a briga deles teve algum resultado positivo, foi que isso a impediu de lhe contar e colocar em risco o futuro de ambos.
Mas que tipo de futuro é este se eu não puder compartilhar meus segredos com meu próprio marido? E se ele parece alheio a que eu tenha segredos?
Ao ter este pensamento, uma leve onda de melancolia tomou conta dela. Ela tentou a afastar de sua cabeça, mas na verdade não conseguiu fazer muito bem.
Ela se assustou com o toque da campainha. Olhando para o relógio, ela entendeu que tinha ficado sentada no mesmo lugar, perdida em sua desilusão, com as mãos pousadas numa caixa de embalagem fechada, durante os últimos dez minutos.
Ela se levantou e caminhou até à porta, tentando sacudir a escuridão de seu sistema a cada passo que dava. Quando ela abriu a porta, Kimberly, que morava do outro lado da rua, estava diante dela com um sorriso alegre no rosto. Jessie tentou corresponder.
“Oi, vizinha”, disse Kimberly com entusiasmo. “Como vai o desencaixotamento?”
“Devagar”, admitiu Jessie. “Mas obrigado por perguntar. Como é que você está?”
“Eu estou bem. Na verdade, tenho algumas senhoras do bairro em minha casa agora para tomar um café no meio da manhã e então pensei que você gostaria de se juntar a nós.”
“Claro”, respondeu Jessie, feliz por ter uma desculpa para sair de casa por alguns minutos.
Ela pegou nas chaves, fechou a porta e foi com Kimberly. Quando elas chegaram, quatro cabeças se viraram em sua direção. Nenhum dos rostos parecia familiar. Kimberly as apresentou a todas e levou Jessie até à mesa do café.
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