Ou que num dia normal, ele não estaria a esconder o que se passava com ele, ou a sentir-se grato pela sua amiga mais próxima ter ido para uma escola diferente depois da última vez que ele e a sua mãe se tinham mudado, para que ela não tivesse de ver nada disto. Ele já não telefonava à Luna há dias, e as mensagens estavam a aumentar no seu telefone. Kevin ignorava-as, porque ele não sabia como lhes responder.
Kevin pôde sentir os olhos sobre si desde o momento em que ele entrou na escola. Os rumores circulavam agora, mesmo que ninguém soubesse com garantias o que se passava com ele. Ele viu um professor adiante, o Sr. Williams, e num dia normal, Kevin teria sido capaz de passar por ele sem sequer atrair um momento de atenção. Ele não era uma daquelas crianças que os professores ficavam de olho porque estavam sempre a fazer algo de errado. Agora, o professor fê-lo parar, olhando-o de cima a baixo como se esperasse sinais de que ele pudesse morrer a qualquer momento.
“Como é que te sentes, Kevin?” ele perguntou. “Estás bem?”
“Estou bem, Sr. Williams” assegurou Kevin. Era mais fácil estar bem do que tentar explicar a verdade: como ele estava preocupado com a sua mãe, e sempre cansado com as tentativas de tratamento, e com medo do que fosse acontecer a seguir.
Como os números ainda estavam à volta na sua cabeça.
23h 06m 29,283s, −05° 02′ 28,59. Eles estavam lá no fundo da sua mente, agachados como um sapo que não se mexia, impossíveis de esquecer, impossíveis de ignorar, por mais que Kevin tentasse seguir as instruções da sua mãe para os esquecer.
“Bem, diz-nos se precisares de alguma coisa” disse o professor.
Kevin ainda não tinha a certeza de como responder a isso. Era, ao mesmo tempo, uma daquelas coisas gentis que as pessoas diziam que era mais ou menos inútil. A única coisa que ele precisava era uma coisa que não lhe podiam dar: desfazer tudo isto; para as coisas voltarem à normalidade. Os professores sabiam muitas coisas, mas não isto.
Ainda assim, ele fez o seu melhor para fingir ser normal durante toda a aula de matemática, e pela maior parte da aula de história a seguir. A Sra. Kapinski estava a contar-lhes algo sobre a história Europeia dos primórdios, que Kevin não tinha a certeza se estava realmente em qualquer tipo de teste, mas que aparentemente tinha sido o que ela fez na faculdade, e assim pareceu realçar mais do que deveria.
“Vocês sabiam que a maioria dos vestígios Romanos encontrados no norte da Europa não são realmente Romanos?” ela perguntou. Kevin geralmente gostava das aulas da Sra. Kapinski, porque ela não tinha medo de se desviar do assunto e contar-lhes sobre quaisquer fragmentos do passado que tivessem entrado na sua cabeça. Era um lembrete do quanto tinha havido no mundo antes de qualquer um deles.
“Então eles são falsos?” Francis de Longe perguntou. Normalmente, seria Kevin a perguntar, mas ele estava a aproveitar a oportunidade para ficar quieto, quase invisível.
“Não exatamente” disse a Sra. Kapinski. “Quando eu digo que eles não são Romanos, quero dizer que são vestígios deixados para trás por pessoas que nunca estiveram perto do que é hoje a Itália. Eram as populações locais, mas à medida que os romanos avançavam, à medida que conquistavam, a população local percebeu que a melhor maneira de se sair bem era adaptar-se aos costumes Romanos. A maneira como se vestiam, as casas em que viviam, a linguagem que falavam, eles mudaram tudo para deixarem claro de que lado estavam e porque isso lhes dava melhores oportunidades de boas posições na nova ordem. Ela sorriu. “Depois, quando houve rebeliões contra Roma, uma das chaves para fazer parte disso era não usar esses símbolos.”
Kevin tentou imaginar isso: as mesmas pessoas num lugar a mudar quem elas eram quando a maré política mudava, com todo o seu ser a mudar consoante quem governasse. Ele pensou que poderia ser um pouco como estar numa das multidões populares na escola, tentando usar as roupas certas e dizer as coisas certas. Mesmo assim, era difícil imaginar, e não apenas porque imagens de paisagens impossíveis continuavam a infiltrar-se no fundo da sua mente.
Essa era provavelmente a única coisa boa sobre o que se passava com ele: os sintomas eram invisíveis. E isso era também a coisa assustadora de certa forma. Havia essa coisa que o estava a matar e, se as pessoas ainda não soubessem, elas nunca iriam descobrir. Ele poderia apenas ficar ali e ninguém jamais...
Kevin sentiu a visão a aproximar-se, elevando-se através dele como um tipo de pressão que crescia através do seu corpo. Houve a tontura, a sensação do mundo a afastar-se enquanto ele se conectava com alguma outra... coisa. Ele levantou-se repentinamente para perguntar se poderia ser dispensado, mas já era tarde demais. Ele sentiu as suas pernas a ficarem fracas e caiu.
Ele estava a ver as mesmas paisagens de que ele se lembrava de antes, o céu com o tom errado, as árvores demasiado torcidas. Ele estava a ver o fogo a percorrê-las, de forma cega e brilhante, parecendo vir de todos os lugares ao mesmo tempo. Ele já tinha visto tudo isso antes. Agora, porém, havia um novo elemento: um batimento fraco que se parecia repetir em intervalos regulares, com a precisão de um relógio.
Uma parte de Kevin sabia que um relógio era o que aquilo tinha que ser, assim como ele sabia por instinto que tal estava a contar algo de forma decrescente, não apenas a marcar o tempo. Parecia que os batimentos estavam a ficar subtilmente mais intensos, como se estivessem a acumular-se para algum crescendo distante. Houve uma palavra numa língua que ele não devia ter entendido, mas ele entendeu-a.
“Espera.”
Kevin queria perguntar do que é que supostamente ele deveria ficar à espera, ou por quanto tempo ou porquê. Ele não o fez, em parte porque não tinha a certeza de a quem ele deveria perguntar, e em parte porque quase tão subitamente quanto tinha chegado, o momento passou, deixando Kevin a erguer-se da escuridão para dar por si deitado no chão da sala de aula, com a Sra. Kapinski debruçada sobre si.
“Deixa-te estar aqui deitado e quieto durante um pouco, Kevin” ela disse. “Eu mandei chamar o médico da escola. O Hal não vai demorar a chegar aqui.”
Kevin sentou-se apesar das instruções dela, porque ele já sabia como é que isto era.
“Eu estou bem” ele assegurou.
“Eu acho que devemos deixar que seja o Hal a avaliar isso.”
Hal era um antigo paramédico, grande e gordo, que servia para garantir que os alunos da Escola St. Brendan's resistiam a qualquer emergência médica que sofressem. Às vezes, Kevin suspeitava que eles o faziam porque pensar na ideia de cuidados médicos fazia com que eles ignorassem o pior dos ferimentos.
“Eu vi coisas” Kevin conseguiu. “Havia um planeta, um sol ardente e uma espécie de mensagem... como uma contagem decrescente.”
Nos filmes, alguém teria insistido em contactar alguém importante. Eles teriam reconhecido a mensagem pelo que ela era. Haveria reuniões e investigações. Alguém teria feito algo sobre isto. Fora dos filmes, Kevin era apenas um rapaz de treze anos, e a Sra. Kapinski olhou para ele com uma mistura de pena e leve perplexidade.
“Bem, tenho a certeza de que não é nada” disse ela. “É provavelmente normal ver todo o tipo de coisas se estás a ter este tipo de... episódio.”
Ao redor deles, Kevin ouvia os murmúrios dos outros na sala de aula. Isso não fazia com que ele se sentisse melhor.
“... caiu e começou a se contorcer...”
“… eu ouvi dizer que ele estava doente, espero que não seja contagioso…”
“... o Kevin acha que vê planetas...”
O último foi o que doeu. Fazia parecer como se ele estivesse a ficar louco. Kevin não estava a ficar louco. Pelo menos, ele não achava que estivesse.
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