Ele estendeu a mão, e um dos seus servos passou-lhe os seus mantos escuros oficiais. Ulren envolveu-os em torno de si, mantendo o capuz para trás enquanto se dirigia para as portas. A espada sangrenta ainda estava na sua mão. Era melhor ser claro sobre o que aquilo se tratava.
Ele foi até uma das janelas altas ali que tinha vista sobre a cidade. A poeira tornava difícil ver alguma coisa, mas ele podia imaginar o que estaria a acontecer lá em baixo. Guerreiros estariam a mover-se pelas ruas, atrás daqueles que Irrien tinha deixado para trás. Pregoeiros estariam a segui-los, proclamando a mudança. Bandidos estariam a dizer aos comerciantes a quem eles agora deviam os seus impostos. A cidade estava a mudar debaixo daquela poeira, e Ulren tinha a certeza de que iria mudar à sua maneira.
Mesmo assim, ele foi cauteloso. Ele já havia estado pronto para conquistar o lugar do Primeiro Pedregulho antes. Ele tinha preparado os mercenários mais fortes, construído um conjunto de segredos, descobrindo depois que um arrivista tinha assumido o trono antes de ele conseguir chegar-lhe.
Quem tinha sido o Primeiro Pedregulho, nessa altura? Maxim? Thessa? Era difícil lembrar, o governo da cidade havia mudado tantas vezes naqueles dias. A única parte que importava era que Irrien tinha ido e levado o que deveria ter sido seu. Ulren tinha sobrevivido aceitando isso. Agora, o Primeiro Pedregulho tinha exagerado, e estava na altura de fazer mais.
Ele entrou na sala onde os Cinco Pedregulhos tomavam as suas decisões. Os outros já estavam lá, como ele tinha esperado que estivessem. Kas estava a acariciar a sua barba tridente com preocupação. Vexa estava a ler um relatório. Borion tinha a ousadia de um homem que sabia que havia problemas.
“O que é isso?”, perguntou ele.
Ulren não perdeu tempo com brincadeiras. “Decidi desafiar Irrien pelo seu lugar.”
Ele observou as reações dos outros. Kas continuou a acariciar a sua barba. Vexa levantou uma sobrancelha. Borion foi quem reagiu mais, mas Ulren já esperava por isso. Irrien tinha advertido o presumido aproximadamente sobre quantos adversários? Quantas vezes é que ele tinha ajudado com dívidas de jogo do outro homem?
“Irrien não está aqui para desafiar,” Borion salientou.
Como se não houvesse precedente para isso. Será que ele achava que Ulren não tinha visto todas as permutações do conselho na sua época como um dos seus Pedregulhos?
“Então isso deveria torná-lo mais fácil, não deveria?”, perguntou Ulren. Ele chegou-se à frente para tomar o lugar de Irrien.
Para sua surpresa, Borion colocou-se à frente dele, desembainhando uma lâmina delgada.
“E achas que vais conseguir ser o Primeiro Pedregulho?”, perguntou. “Um velho que tomou a sua posição há tanto tempo que ninguém sequer se consegue lembrar? Que mantém o lugar de Segundo Pedregulho principalmente porque Irrien não quer disrupção?”
Ulren dirigiu-se para um espaço vazio, despindo o seu manto formal e envolvendo-o folgadamente sobre um braço.
“É por isso que achas que estou apegado a isso?”, perguntou ele. “Queres realmente pôr-me à prova, rapaz?”
“Eu queria-o há anos, mas Irrien estava sempre a dizer-me não”, disse Borion. Ele ergueu a lâmina colocando-a numa postura de um duelista. Ulren sorriu ao ver aquilo.
“Esta é tua última hipótese de viver”, disse Ulren, embora na verdade tal tivesse passado o momento em que o outro homem tinha erguido uma lâmina contra si. “Repara que Kas e Vexa têm mais juízo do que experimentar isto. Coloca a tua arma de lado, e senta-te no teu lugar. Tu até devias ser capaz de subir um lugar.”
“Porquê subir um quando posso matar um homem velho e subir três?”, rebateu Borion.
Ele lançou-se para frente, e Ulren teve de admitir que o rapaz foi rápido. Ulren provavelmente tinha sido mais rápido na sua juventude, mas isso já tinha sido há muito tempo. Porém, ele tinha tido muito tempo para aprender as habilidades da guerra, e um homem que julgava a distância corretamente não tinha de ser rápido. Ele passou em torno o seu manto enrolado, fazendo-o girar e emaranhando-o na espada de Borion.
“É tudo o que tens, velhote?”, quis saber o Quinto Pedregulho. “Truques?”
Ulren riu-se e, em seguida, atacou. Borion foi rápido o suficiente para saltar para trás, mas não sem que a lâmina de Ulren lhe raspasse o peito.
“Não subestimes truques, rapaz”, disse Ulren. “Um homem sobrevive de qualquer maneira que consiga.”
Ele deu um passo para trás, à espera.
Borion apressou-se. Claro que se apressou. Os jovens reagiam, eles movimentavam-se em linha com as suas emoções. Eles não pensavam. Ou eles não pensavam o suficiente. Borion tentou uma medida de astúcia, com fintas que Ulren já tinha visto uma centena de vezes antes. Esse era o perigo de se ser jovem: pensavam que tinham inventado coisas que já tinham matado muitos homens antes.
Ulren afastou-se e atirou o seu manto sobre o homem mais jovem quando ele passou, com o seu verdadeiro golpe. Borion debateu-se com o tecido, tentando afastá-lo, e, nesse momento, Ulren atacou. Ele aproximou-se, agarrando o braço de Borion para que ele não conseguisse agarrar na sua espada e, em seguida, começou a esfaquear.
Ele fê-lo de forma metódica, de forma consistente, com a paciência que tinha acumulado em anos de luta. Ulren podia ver o sangue a escorrer através do seu manto envolvido em torno de Borion, mas ele não parou até o outro homem cair. Ele tinha visto homens a voltar do pior dos ferimentos. Ele não ia arriscar nada.
Ele ficou ali, a respirar com dificuldade. Já tinha sido suficientemente mau ter subido todas as escadas. Matar um homem fê-lo sentir como se os seus pulmões pudessem estourar com o esforço, mas Ulren disfarçou-o. Ele foi até ao lugar de Irrien, posicionando-se atrás dele primeiro.
“Algum de vocês deseja se opor?”, perguntou ele a Kas e Vexa.
“Só à confusão”, disse Kas. “Mas há escravos para tais coisas, acho.”
“Uma saudação ao Primeiro Pedregulho”, disse Vexa, sem nenhum entusiasmo em particular.
Era um momento de triunfo. Mais do que isso, era o momento para o qual Ulren tinha trabalhado durante anos. Agora que tinha acontecido, parecia-lhe estranho sentar-se efetivamente no lugar do Primeiro Pedregulho, baixando-se a si próprio para o granito do mesmo.
“Eu já me encarreguei dos interesses de Irrien”, disse Ulren. Ele acenou com a mão na direção de Borion. “Mas sintam-se à vontade para se servirem do rapaz.”
Eles iriam-se. Ulren não tinha dúvidas de que eles o fariam. Afinal de contas, aquela cidade era mesmo assim.
“E, claro, precisaremos de novos Quarto e Quinto Pedregulhos”, disse Ulren.
Tal deveria ter sido a deixa deles para se desviarem. Porém, nenhum o fez. Eles mantinham os lugares pelos quais eles tinham lutado, deixando o lugar do Segundo Pedregulho vazio. Ulren não tinha a certeza de que gostava disso, mesmo entendendo o medo que estava por detrás. Eles não estavam a ir para o novo lugar dele, mas isso era um sinal de que eles não consideravam aquilo resolvido, e que eles não iam acatar a nova ordem.
Eles estavam relutantes da mesma maneira que ele havia estado quando Irrien chegara ao poder.
Mais do que isso, eles estavam a agir como se aquilo não estivesse acabado.
Stephania acordou num mundo cheio de agonia. O universo inteiro parecia ter-se emaranhado numa bola de dor embrulhada no estômago dela. Ela sentia-se como se tivesse sido destroçada em pedaços... mas que raio, ela havia sido cortada.
Esse pensamento foi o suficiente para fazê-la gritar novamente, e, desta vez não havia sacerdotes e guerreiros ali para a ouvirem em agonia, apenas o céu aberto acima dela, visível através da neblina das suas lágrimas. Eles tinham-na arrastado para a rua e abandonado-a à sua morte.
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