“Temos uma hipótese de sermos comidos também”, salientou a mulher do Povo dos Ossos.
Thanos encolheu os ombros. Não havia melhores opções que ele conseguisse ver. Não havia tempo para ir para qualquer outro lado, e não havia melhor caminho. Eles poderiam arriscar isso, ou ficarem ali até Akila morrer, e Thanos não abandonaria o seu amigo assim.
Ceres parecia sentir o mesmo.
“Seja então a Passagem dos Monstros. Icemos a vela!”
Ulren, o Segundo Pedregulho, aproximou-se da torre de cinco lados com a determinação calma de um homem que havia planeado tudo o que podia acontecer a seguir. Em torno dele, a poeira da cidade girava na sua habitual dança interminável, fazendo com que ele quisesse tossir ou cobrir a boca. Ulren fez nenhuma dessas coisas. Aquele era um momento para parecer forte.
Havia guardas nas portas, como sempre. Ostensivamente pagos por todos os cinco Pedregulhos, exceto pelos homens de Irrien, em boa verdade. Foi por isso que eles cruzaram as suas lanças em desafio, para lembrar a qualquer Pedregulho inferior qual era o seu lugar.
“Quem aí vai?”, perguntou um.
Ulren sorriu ao ouvir aquilo. “O novo Primeiro Pedregulho de Felldust.”
Ele teve um momento para ver o choque nos olhos deles antes dos seus homens saírem da poeira, erguendo as suas bestas. Ele não tinha o peso absoluto das armas que Irrien tinha ou os espiões astutos de Vexa, a riqueza de Kas ou os amigos nobres de Borion, mas ele tinha o suficiente de cada um, e agora, finalmente, ele tinha a coragem de usá-los.
Ele gostava da visão das flechas das bestas a flutuarem na direção dos peitos dos guardas depois de eles o terem controlado tantas vezes. Era mesquinho, mas aquele era um momento para ceder à mesquinhez. Aquele era o momento em que ele tinha de fazer tudo o que ele sempre tinha querido fazer.
Ele abriu a porta com a sua chave, entrando para a luz da torre. O que é que aquilo dizia sobre a cidade quando a lâmpada cheia de fumo lá dentro era ainda melhor do que a de lá fora? Ainda assim, até aquilo parecia doce naquele dia.
“Sejam rápidos”, disse ele aos homens e mulheres que seguiam. “Ataquem rapidamente.”
Eles espalharam-se e o brilho das suas armas ficou embotado do negro do fumo. Quando os guardas vieram de um dos corredores, eles saltaram para frente em silêncio, atacando. Ulren não parou para ver o sangue e a morte. Naquele preciso momento, nada daquilo importava.
Ele desatou a subir os aparentemente intermináveis lances de escadas que levavam à câmara superior. Ele tinha feito aquilo tantas vezes, e, todas as vezes, tinha sido na expectativa de que ele estaria ali como uma coisa menor, segundo ou terceiro ou menos numa cidade onde o Primeiro de Cinco era o único lugar que importava.
Essa era a piada cruel da cidade, aos olhos de Ulren. Todos a lutar para estar no topo, cinco trabalhando em conjunto, mas todos sabiam que o Primeiro Pedregulho era o mais forte. Ulren tinha estado a conspirar para ser Primeiro há tanto tempo que ele não conseguia lembrar-se de quando é que ele tinha querido outra coisa qualquer.
Ele havia sido cauteloso, apesar de aquilo dever ter sido sempre dele. Ele tinha construído o seu poder, começando com as terras da sua família, mas acrescentando-lhes valor, cuidando dos seus recursos da mesma maneira que um jardineiro podia ter cuidado de uma planta. Ele tinha sido muito paciente, tão paciente. Ele tinha-se esforçado para conquistar o lugar do Primeiro Pedregulho.
Mas depois Irrien tinha aparecido, e ele tinha tido de ter paciência outra vez.
Em torno de Ulren, os assassinatos continuavam enquanto ele subia. Servos que vestiam as cores do Primeiro Pedregulho morriam, abatidos pelos seus homens. Sem hesitação, sem remorso. Felldust era uma terra onde até mesmo um escravo de aparência inocente poderia segurar um punhal, na esperança de avançar.
Um soldado atacou surgindo das sombras e Ulren agarrou-o com firmeza, procurando alavancagem.
O homem era forte, embora talvez isso fosse simplesmente a idade a pesar contra si. Ulren tinha descoberto que o seu corpo doía-lhe agora, quando havia estado no campo de treinos na sua casa, e as escravas que em tempos iam ter com ele de bom grado tinham agora de esconder as suas expressões de desgosto e desânimo. Havia dias em que ele entrava nos quartos e mal se conseguia lembrar porque é que se tinha dado ao trabalho.
Mas ele não tinha perdido nenhuma da sua astúcia. Ele virou-se com a força da investida do outro homem, enganchando o pé por detrás da perna do seu atacante e empurrando com a força que tinha. O soldado tropeçou, e depois caiu, de cabeça para baixo pelas escadas de espiral abaixo da torre de cinco lados. Ulren deixou-o para os seus guerreiros terminarem. Já era suficiente que ele não tivesse parecido fraco.
“Está tudo pronto no resto da cidade?”, perguntou ele a Travlen, o sacerdote que havia desistido da sua ordem para caminhar ao lado dele.
“Sim, meu lorde. Os teus guerreiros estão a atingir aqueles do povo de Irrien que permanecem na cidade, exatamente neste momento. Algumas das suas empresas comerciais têm-se oferecido para vir para o teu lado, enquanto naquelas que não o fizeram, disseram-me o abate tem sido suficiente para agradar aos próprios deuses.”
Ulren assentiu. “Isso é bom. Aceitem todos os que desejem juntar-se a nós e, depois, vejam quem pode substituir os que os dirigem. Eu não tenho tempo para traidores.”
“Sim, meu lorde.”
“Deuses”, disse Ulren, “estas escadas nunca mais acabam?”
Outro homem poderia ter considerado mover o centro do poder de Felldust assim que tivesse o seu controlo, mas Ulren sabia o que é que era melhor fazer. Numa terra como aquela, a tradição era apenas mais uma forma de manter o controlo.
Eles chegaram ao piso mais alto, onde servos e escravos cortavam frutas e transportavam água, à espera de qualquer capricho dos outros Pedregulhos. Ulren estava ali, com os seus guerreiros espalhados à sua volta.
“Há aqui algum escravo ou servo do Primeiro Pedregulho?”, perguntou ele.
Alguns avançaram. Como é que eles poderiam ser alguma outra coisa? Irrien havia-os abandonado ali. Talvez ele os quisesse no lugar quando voltasse. Talvez ele simplesmente não ligasse. Ulren observou os homens e mulheres que estavam ali. Ele imaginou que Irrien estivesse a saborear o medo nos seus rostos naquele exato momento. Ele tinha passado tempo suficiente em torno do Primeiro Pedregulho para saber exatamente que tipo de homem era o seu rival.
Ulren simplesmente não se importava. “A partir deste momento, vocês são todos meus escravos. Os meus homens vão determinar quais de vocês vale a pena manter, e quais vão ser dados aos templos para sacrifício.”
“Mas eu sou um homem livre”, queixou-se um dos servos que ali estava.
Ulren aproximou-se e apunhalou-o com uma lâmina serrilhada, através do esterno e saindo pelas costas.
“Um homem livre que escolheu o lado errado. Mais alguém deseja morrer?”
Em vez disso, eles ajoelharam-se. Ulren ignorou-os, passando por cima na direção das grandes portas duplas que marcavam a entrada principal da câmara do conselho. Havia outras entradas, uma para cada um dos Pedregulhos. Serviam para mostrar a independência deles. Garantidamente davam-lhes uma maneira de fugir se o tivessem de fazer.
Porém, ele não achava que eles fossem fugir daquilo. Não, se ele o fizesse de forma adequada. Ulren fez sinal para o seu povo parar e esperar. Havia formas de fazer aquelas coisas. Era algo que Irrien nunca tinha entendido, sendo um bárbaro da poeira. Era a única vantagem que o Segundo Pedregulho tinha sobre o Primeiro, e ele pretendia aproveitar-se disso.
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