— No sábado, à noite, compadre.
O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:
— Já foste à polícia?
— Na mesma noite.
— Então?
— Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...
— E não voltaste?
— Para quê?
— Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim? A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?
Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.
— Eu disse isto mesmo, compadre.
— Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.
— Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.
— Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.
— Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.
— Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...
— Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.
— Tem paciência, meu filho! - implorou a velha. Paulo levantou-se amuado:
— Eu também sou de carne.
— Também eu, - retorquiu Fábio em tom ríspido - e tenho cinqüenta e oito feitos, entretanto, meu rapaz, não sei que é descanso. O interesse é de todos vocês.
Paulo tomou o chapéu e a bengala e, arrebatadamente, sem mesmo falar ao velho, que enxugava a fronte suada, abriu a porta e saiu resmungando.
— Tem paciência, - insistiu Fábio - é assim: quem quer faz assim.
A porta, impelida pelo vento, abria-se devagarinho, rinchando, e Dona Júlia levantou-se para fechá-la. Sós, o velho Fábio externou-se francamente:
— Olhe, comadre, quer saber? Parecia que eu estava adivinhando isto; mais de uma vez, lá em casa, eu disse à Marta: "Aquilo não vai bem. Aquela menina não tem modos, não sai da janela, dando trela a quanto pelintra vê." Agora, que o caso está passado, eu digo a verdade: Marta não era lá muito pelas conversas de Violante com Cristina. Não dava a perceber para que a senhora não ficasse magoada, mas gostar, não gostava. E eu cheguei a falar, lembre-se bem, no dia dos anos do Tula. Era com todos, comadre... até com homens casados.
Dona Júlia suspirou, afirmando:
— Sim, o compadre falou... Mas que havia eu de fazer?
— Que havia de fazer?! Pois então a comadre não é mãe? Olhe, a Cristina é noiva, mas vá lá saber se eu a deixo um instante só com o noivo... E é um moço sério. Não, senhora; há sempre gente na sala com eles.
E, curvando-se, sentenciou com lentidão:
— Minha comadre - a ocasião faz o ladrão. Isso de moças solteiras é mais melindroso do que parece. - Engrossou a voz: E Violante? reunia aqui uma súcia de frangotes; era conversa com um, era risada com outro, afastando os moços sérios que a estimavam. De um sei eu que era doido por ela.
— O Fernando, da botica.
— Sim, senhora, o Fernando. Está começando a vida, mas é um rapaz de futuro. Ele disse-me, lastimando, que sempre que passava por sua casa via Violante à janela e rapazes batendo a calçada.
Cruzou os braços, perguntando com ar de nojo:
— Isso era decente? diga! era decente?
— Eu não sei! - suspirou a boa senhora.
— O rapaz recuou, porque, afinal, ele não a queria por passatempo, e a comadre compreende que, quando um homem pensa seriamente em casar, trata de estudar a moça, indaga, informa-se... E Violante? Não se zangue comigo, mas a senhora foi culpada em parte, isso foi. Amor não é isso. Eu quero muito à Cristina, mas nem por isso ando a passar-lhe a mão pela cabeça - quando é preciso, falo, grito, bato o pé e ninguém me contraria. Não, que não admito. Não vai casar? então...! Ainda depois de casada, se for preciso, lá irei dizer-lhe as verdades, mesmo diante do marido, porque o que eu quero é vê-la feliz. Mas sua filha, se a gente queria dar-lhe um conselho, saltava logo com duas pedras na mão. Outro - esse rapaz.
A velha levantou os olhos assombrados:
— Sim senhora, o Paulo. Excelente menino, mas um pouco atrevido... e parece que não tem ainda o juízo assente: são dez, vinte idéias por dia; quer ser tudo, não é nada. Em quantas academias tem ele andado? Já quis ser engenheiro, deixou; pensou em meter-se na marinha, andou a estudar para guarda-livros, e está agora às voltas com a medicina. Esse há de ser médico quando eu for frade. Não é assim, tenha paciência. Não é assim.
— Mas ele estuda, compadre; eu vejo. Fica, às vezes, até de madrugada em cima dos livros.
— Que tem isso? Estuda e é inteligente, mas à primeira dificuldade, recua desanimado. Não, senhora - é para diante! Quem quer ser alguma coisa na vida queima as pestanas e firma-se numa idéia: é isto porque é! Ele não - é só orgulho! - e encheu as bochechas, bufando. - Ninguém tem o direito de lhe dizer uma palavra que logo se não espinhe. Se um professor faz uma observação, fica de trombas, não volta à escola, e há de viver assim: daqui para ali, sem firmar-se em uma carreira. Também já não é uma criança; com vinte anos há por aí muito pai de família.
— E ele, então, não trabalha, compadre?
— Trabalha, trabalha... mas é um mês aqui, um mês ali. A propósito: ainda está no jornal?
— Ainda.
— Pois olhe: admira. Que melhor emprego queria ele que o de amanuense na Secretaria do Interior? Não fez concurso? Não foi classificado?
— Diz que não tem jeito para emprego público.
— Ah! não tem jeito?! O que ele não tem é cabeça, como a irmã. Agora mesmo - no primeiro momento fez, aconteceu, andou por aí com chuva, mas já desanimou, nem se preocupa mais com o caso. Não é assim, comadre; não é assim. Quem quer alguma coisa, trabalha; sem persistência nada se faz; a senhora bem sabe, porque tem lutado para viver. Mas é preciso ter o juízo assente. Com a menina foi o mesmo: vontades, vontades, e aí está em que deram. Então, Violante não podia cuidar um pouco da casa, arrumar o seu quarto? coser a sua roupa? Eu nunca vim aqui que a encontrasse trabalhando - ou estava dormindo ou lendo, recostada na cadeira de balanço, como uma princesa. Nem os ticos vivem assim, comadre; nem os que têm... Enfim, não quero amofíná-la mais; vamos ver se ainda se pode fazer alguma coisa. É no que dão as condescendências. Quem quer belas flores e belos frutos poda as demasias da planta. É assim.
Levantou-se.
— Não quer uma xícara de café, compadre?
— Nada, obrigado.
Apanhou o chapéu e o guarda-chuva.
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