— Não acho que seja tão fácil apagar a história — disse Trevize.
— E não é, mas um governo poderoso e decidido pode enfraquecê-la consideravelmente. Nesse caso, as tradições verbais deixam de ser apoiadas por documentos confiáveis e passam à categoria de simples lendas. Inevitavelmente, essas lendas estão cheias de exageros e retratam o setor como muito mais antigo e importante do que realmente foi. Além disso, por mais tola que seja uma lenda, por mais impossíveis que sejam os fatos relatados, a população local faz questão de acreditar nela por uma questão de patriotismo. Posso lhe mostrar lendas de todos os cantos da Galáxia segundo as quais os primeiros colonizadores eram oriundos da própria Terra, embora nem sempre o planeta original receba esse nome.
— Quais os outros nomes que aparecem nas lendas?
— São nomes os mais diversos. Alguns chamam o planeta de Único, outros de Velho. Outros ainda se referem ao Mundo Enluarado, o que, de acordo com algumas fontes, se deve ao fato de que a Terra possuía um grande satélite.
— Pare, Janov! — exclamou Trevize, com um sorriso. — Se for citar todas as suas fontes, você não acabará nunca. Então essas lendas estão em toda parte?
— Oh, sim, meu caro amigo. Em toda parte! Basta examinar algumas delas para perceber que o Homem tem o costume de começar com uma semente de verdade e cobri-la com camada sobre camada de mentiras agradáveis... como as pérolas que as ostras de Rhampora formam em torno de um grão de areia. Encontrei esta metáfora no livro do famoso historiador...
— Pare de novo, Janov! Diga-me, existe alguma diferença entre as lendas de Comporellon e as outras lendas?
— Oh! — Pelorat levou algum tempo para compreender a pergunta. — Diferença? Bem, eles afirmam que a Terra fica relativamente perto, o que não é comum. Na maioria das lendas que falam da Terra, ou de um planeta semelhante, não é mencionada nenhuma localização específica... é como se estivesse muito distante ou em uma terra de sonho.
— Sim, como havia gente em Sayshell que acreditava que Gaia estivesse localizado no hiperespaço.
Bliss riu.
Trevize voltou-se para ela.
— É verdade! Foi o que nos disseram!
— Não estou duvidando de você. Mesmo assim, não deixa de ser engraçado. Na verdade, este mito é muito conveniente para nós. No momento, só queremos que nos deixem em paz. Se as pessoas acreditam que estamos no hiperespaço, não têm motivo para sair à nossa procura.
— O mesmo se aplica à Terra — disse Trevize, secamente. — As pessoas não têm motivo para sair em busca da Terra se acham que ela não existe, fica muito longe ou está totalmente radioativa.
— Acontece — objetou Pelorat — que os comporelianos afirmam que a Terra não fica longe do seu planeta.
— Sim, mas pensam que ficou radioativa. De uma forma ou de outra, as lendas sempre mostram a Terra como um planeta inatingível.
— Acho que tem razão. Trevize prosseguiu:
— Muitos habitantes de Sayshell acreditavam que Gaia não estava muito distante; alguns chegaram a identificar corretamente a estrela; no entanto, nenhum tinha esperança de visitar Gaia. Os comporelianos podem insistir em que a Terra está radioativa e deserta, mas pode haver alguém capaz de nos indicar o seu sol. Nesse caso, tentaremos desembarcar na Terra, da mesma forma como desembarcamos em Gaia.
— Gaia estava disposto a recebê-los, Trevize — disse Bliss. — Vocês estavam totalmente indefesos, mas não corriam nenhum perigo, porque nossas intenções eram pacíficas. E se a Terra também for poderosa, mas não tão bem intencionada? O que pretende fazer?
— Seja como for, tentarei o desembarque e aceitarei as consequências. Entretanto, esta é uma decisão pessoal. Depois que eu localizar a Terra, vocês poderão continuar comigo ou não. Posso deixá-los no planeta mais próximo da Fundação, ou levá-los de volta para Gaia, e viajar para a Terra sozinho.
— Nem fale nisso, meu amigo! — exclamou Pelorat, indignado. — Jamais pensaria em abandoná-lo!
— Nem eu abandonaria Pel — afirmou Bliss, passando a mão no rosto de Pelorat.
— Está bem. Está quase na hora do Salto para Comporellon. De lá, se tudo correr bem, poderemos ir direto para a Terra.
Capítulo 3
Na Estação Espacial
Bliss entrou no quarto e perguntou:
— Trevize lhe contou que vamos dar o Salto no hiperespaço a qualquer momento?
Pelorat, que estava lendo, levantou a cabeça e disse:
— Há poucos momentos ele chegou aí na porta e anunciou: “Falta menos de meia hora!”
— A ideia não me agrada, Pel. Não gosto do Salto. Acho a sensação muito desagradável.
Pelorat pareceu levemente surpreso.
— Nunca havia pensado em você como astronauta, Bliss querida.
— Não tenho muita prática, e não estou falando apenas como Bliss. A experiência de Gaia em relação a viagens espaciais é bastante limitada. Por minha/nossa própria natureza, eu/nós/Gaia não mantemos relações comerciais ou diplomáticas com outros planetas. Mesmo assim, precisamos de alguém para guarnecer as estações espaciais...
— Como aquela em que tivemos a felicidade de nos conhecer.
— Isso mesmo, Pel — disse Bliss, em tom afetuoso. — Ou para visitar Sayshell e outros setores do espaço, por várias razões... e geralmente incógnitos. Incógnitos ou não, o fato é que temos que executar o Salto, e, naturalmente, quando uma parte de Gaia executa o Salto, Gaia inteiro sente.
— Sinto muito — disse Pel.
— Podia ser pior. Como a maior parte de Gaia não está executando o Salto, o efeito é bastante diluído. Entretanto, tenho a impressão de que sinto mais o Salto do que o resto de Gaia. Como vivo dizendo para Trevize, embora tudo o que existe em Gaia seja Gaia, as diferentes partes não são idênticas. Temos nossas diferenças e meu organismo, por alguma razão, é particularmente sensível ao Salto.
— Espere! — exclamou Pelorat, lembrando-se subitamente. — Trevize me explicou uma vez. A sensação é muito pior nas naves comuns. Nessas naves, o campo gravitacional da Galáxia desaparece quando a nave entra no hiperespaço e torna a aparecer quando ela volta ao espaço normal. É a variação súbita do campo gravitacional que produz uma sensação desagradável. Por outro lado, o Estrela Distante é uma nave gravítica. Está isolado do campo gravitacional. Assim, você não vai sentir nada, nem no início nem no final do Salto. Posso assegurar-lhe, Bliss, por experiência própria.
— É uma ótima notícia, Pel. Gostaria de ter discutido o assunto há mais tempo. Dessa forma, teria poupado a mim mesma muitas horas de preocupação.
— Existem outras vantagens — disse Pelorat, sentindo-se muito orgulhoso em seu novo papel de astronauta experiente. — As naves comuns têm que se afastar das massas grandes, como as estrelas, antes de poderem executar um Salto. Em parte, isto se deve ao fato de que quanto mais próxima estiver uma estrela, mais intenso será o campo gravitacional e mais pronunciadas as sensações do Salto. Além disso, quanto mais intenso o campo gravitacional, mais complicadas as equações que devem ser resolvidas para executar o Salto com precisão.
”Nas naves gravíticas, por outro lado, praticamente não existe a sensação do Salto. A nave dispõe de um computador muito mais avançado que o das naves comuns, que é capaz de determinar os parâmetros do Salto com extrema rapidez, por mais complexas que sejam as equações envolvidas. O resultado é que, ao invés de ter que viajar durante várias semanas no espaço comum para chegar a uma distância segura para o Salto, o Estrela Distante precisa viajar apenas dois ou três dias. Além disso, como a nave não está sujeita ao campo gravitacional, não sofre os efeitos da inércia... Confesso que esta parte eu não entendo, mas foi o que Trevize me contou... e portanto pode acelerar muito mais depressa que uma nave comum.
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