„Transcorreram algumas décadas até que as respostas surgissem, e mais algumas antes que fossem aceitas por quase todos os homens inteligentes. Coisas ruins haviam acontecido com tanta freqüência quanto coisas boas, e como há muito se suspeitara, o universo simplesmente obedecia às leis da probabilidade matemática. Certamente não havia nenhum indício de qualquer intervenção sobrenatural, fosse para o bem ou para o mal.”
„Assim, o problema do Mal nunca existira realmente. Esperar que o universo fosse benevolente, seria como imaginar que alguém pudesse vencer sempre num jogo de pura sorte. Alguns adeptos tentaram salvar a situação proclamando a religião de Alfa, o Indiferente, usando a curva em forma de sino da distribuição normal como símbolo de sua fé. Desnecessário dizer que uma divindade tão abstrata não inspirou muita devoção.”
„E já que estamos falando da matemática, essa ciência deu outro golpe devastador em Alfa no século XXI (ou terá sido no XXII?). Um homem brilhante, chamado Kurt Deusan, provou que existiam certos limites absolutamente fundamentais ao conhecimento e, portanto, que a idéia de um ser onisciente, uma das definições de Alfa, seria logicamente absurda. Esta descoberta chegou até nós em uma daquelas piadas inesquecivelmente ruins: Deusan Anula Deus. E os estudantes costumavam pichar os muros com as letras D. A. D., e, é claro, havia versões dizendo: Deus Anula Deusan!”
„Mas voltando ao Alfa, ele tinha desaparecido das preocupações humanas por volta da metade do milênio. Praticamente todos os homens conscientes haviam finalmente passado a concordar com o severo veredicto do grande filósofo Lucrécio: todas as religiões são fundamentalmente imorais porque as superstições que espalham provocam mais mal do que bem. E, no entanto, algumas das antigas fés conseguiram sobreviver, embora sob formas drasticamente alteradas, até o fim da Terra. Os Mórmons dos Últimos Dias e As Filhas do Profeta chegaram mesmo a construir naves semeadoras próprias. Eu freqüentemente me pergunto o que terá acontecido com elas.”
„Com Alfa desacreditado, restou Ômega, o Criador de tudo. Não é fácil abandonar ômega, o universo exige certa explicação. Ou não?
Existe uma antiga piada filosófica que é muito mais sutil do que parece. Pergunta: por que o Universo está aqui? Resposta: onde mais ele poderia estar? E eu creio que isto é bastante por hoje.” — Obrigado, Moisés — respondeu Mirissa, levemente surpresa.
— Você disse tudo isso antes, não? — O que é? — Não acredite em nada do que eu lhe disse só porque eu disse. Nenhum problema filosófico jamais é resolvido, Ômega ainda está por aí, e às vezes eu me pergunto quanto a Alfa… parecendo — É claro que disse, muitas vezes. E prometa-me uma coisa.
VII — ENQUANTO AS CENTELHAS SOBEM
Seu nome era Carina, e tinha dezoito anos. Embora fosse a primeira noite que saía no barco de Kumar, não era de modo algum a primeira vez que se abandonava nos seus braços. Ela desfrutava, de fato, o disputado privilégio de ser a sua garota favorita. Havia duas horas que o sol se pusera, mas a lua interna, tão mais brilhante e mais próxima que a Lua perdida da Terra, estava quase cheia, e a praia, meio quilômetro além, parecia banhada em sua luz gélida e azulada. Uma pequena fogueira queimava logo após a linha de palmeiras, onde uma festa continuava e o fraco som de música podia ser ouvido de tempos em tempos, erguendo-se sobre o suave murmúrio do propulsor a jato, que operava em sua força mínima. Kumar já alcançara seu objetivo principal e não tinha muita pressa de ir a qualquer outro lugar. Apesar disso, como bom marinheiro que era, ocasionalmente deixava os braços da moça para dizer algumas palavras de instrução ao piloto automático e fazer um rápido exame do horizonte. „Kumar falara a verdade”, pensou Carina extasiada. Havia alguma coisa bastante erótica no ritmo suave e regular de um barco ao sabor das ondas, principalmente quando amplificado pela cama inflável onde se deitavam. Depois disso, será que ela voltaria a se contentar com o amor feito em terra firme? E Kumar, ao contrário de outros jovens tarnianos, era surpreendentemente carinhoso e atencioso. Ele não era daqueles homens que se preocupam unicamente com sua própria satisfação, seu prazer não era completo a menos que fosse compartilhado. „Enquanto ele está dentro de mim”, pensou Carina, „eu me sinto como se fosse a única mulher em sua vida, mesmo sabendo perfeitamente que isso não é verdade.” Carina tinha á vaga impressão de que continuavam a afastar-se do vilarejo, mas não se importava. Ela queria que aquele momento durasse para sempre e não se importaria se o barco estivesse se dirigindo a toda velocidade para o mar aberto, sem nenhuma terra à frente até que circunavegassem o globo. Kumar sabia o que estava fazendo, em todos os sentidos. Parte do prazer de Carina vinha da confiança total que ele inspirava. Em seus braços ela não tinha problemas nem preocupações, o futuro não existia, apenas o presente, destituído de tempo. E, no entanto, o tempo passava, e agora a lua interna estava muito mais alta no céu. No período posterior à paixão, seus lábios ainda exploravam languidamente os territórios do amor quando o pulsar dos hidrojatos cessou e o barco flutuou até parar.
— Aqui estamos excitação na voz. — disse Kumar, com um tom de E onde pode ser aqui, pensou Carina preguiçosamente, enquanto os dois se separavam, rolando para fora da cama. Parecia que tinham transcorrido horas desde a última vez em que ela se importara em olhar para a linha costeira… mesmo presumindo que ainda estivesse à vista. Ela se levantou lentamente, firmando-se contra o suave ondular do barco, e olhou para um país de fadas que há não muito tempo fora um sinistro pântano batizado de forma auspiciosa, mas pouco realista, Baía dos Manguezais. Esta não era, evidentemente, a primeira vez que se via diante de tecnologia tão avançada. A usina de fusão e o Replicador principal na ilha do Norte eram maiores e muito mais impressionantes. Mas ver esse labirinto brilhantemente iluminado de encanamentos e tanques de armazenagem, com guindastes e mecanismos de transporte, toda essa agitada mistura de estaleiro e usina química, guiando silenciosa e eficientemente sob as estrelas, sem nenhum ser humano à vista, era um verdadeiro choque visual e psicológico. Houve um súbito esguicho, assustador no completo silêncio da noite, quando Kumar lançou a âncora.
— Vamos — disse ele com um jeito malicioso.
— Quero mostrarlhe algo.
— Não é perigoso? — Claro que não, eu já estive aqui várias vezes. „E nenhuma vez sozinho”, pensou Carina. Mas ele já tinha saltado pela borda do barco antes que pudesse fazer qualquer comentário.
A água chegava mais ou menos até a cintura e ainda conservava tanto calor do dia que chegava a dar uma desagradável sensação de tepidez. Quando Carina e Kumar caminharam para a praia de mãos dadas, era refrescante sentir a brisa fria da noite em seus corpos. Eles emergiram da água ondulante como um novo Adão e uma nova Eva que tivessem recebido as chaves de um Éden mecanizado.
— Não se preocupe! — disse Kumar.
— Eu sei andar por aqui. O Dr. Lorensen me explicou tudo. Mas achei alguma coisa que tenho certeza que ele não sabe. Ambos caminharam ao longo de uma linha de encanamentos pesadamente isolados, erguidos a um metro do solo e agora, pela primeira vez, Carina podia ouvir o som distinto do pulsar das bombas, forçando o fluido de refrigeração através do labirinto de encanamentos e trocadores de calor que os circundavam. Daí a pouco eles chegaram ao famoso tanque onde o scorp fora encontrado. Muito pouca água era agora visível. A superfície encontravase quase inteiramente coberta por uma massa de algas emaranhadas. Não havia répteis em Thalassa, mas os caules grossos e flexíveis lembraram a Carina cobras entrelaçadas. Eles caminharam ao longo de uma série de aquedutos e pequenas comportas, todas elas fechadas naquele momento, até alcançarem uma ampla área aberta, bem distante da fábrica principal. Enquanto deixavam o complexo central, Kumar acenou alegremente para as lentes de uma câmara apontada. Mais tarde ninguém conseguiu descobrir por que ela fora desligada naquele momento crucial.
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