A verdade é que, a grande maioria das pessoas ainda mantém a crença do apego e a convicção do domínio. O medo de verem partir aqueles que amam, o anseio de perderem aquilo que adquiriram e que pensam que possuem, o temor de ficarem sós...Crenças que geram nas pessoas um determinado conjunto de atitudes e comportamentos que as afastam da sua essência, distanciando-se do apenas SER.
São criadas ansiedades desnecessárias que, por sua vez, proporcionam o encapsulamento da alma. As pessoas tornam-se prisioneiras dos seus próprios medos e, como consequência, da necessidade de controlar. Muitos acreditam que tendo determinados cuidados, correspondendo às expectativas alheias e cumprindo direitinho o que a Sociedade lhes impõe, que tudo vai correr bem e que serão felizes para sempre! Bastante irónico, não?
Tendo em conta que, de um dia para o outro, ou numa fração de minuto, podem perder tudo, chegando, rapidamente, à conclusão de que o controlo, afinal, não servia para nada, era apenas uma fantasia, uma mera ilusão...
Efetivamente, a única verdade absoluta é a impermanência!
Já amanheceu e, aqui em casa, ao fim-de-semana é hábito acordar tarde. É meio-dia e a Ariel ainda dorme “enrolada” no edredão branco, como se fosse uma crisálida.
O Simão mantém a porta fechada e o quarto num escuro cerrado, como se ainda fosse de madrugada.
Partilhamos a casa com os nossos gatos. A Grey, uma gata cautelosa, independente e tranquila, de olhos azuis e de pelo grisalho. O Billy é um gato preto e branco, relaxado, irrequieto e mimado.
Dois adolescentes na flor da idade, uma mãe quase bipolar e um gato e uma gata, que ora se amam ora se odeiam e que, muitas vezes, devem julgar que estão no meio da selva ou na savana africana...não preciso de dizer muito, para se perceber que aqui não há monotonia.
— Ariel! – chamo, enquanto abro os estores, para ela perceber que já é bem de dia. – Bom dia! Sabes que horas são, menina?
Bato à porta do Simão, entro na escuridão e faço clarear o quarto o mais depressa possível.
— Acorda miúdo! Já é tarde!
A minha filha Ariel tem 13 anos, menina rebelde, refilona, mas muito sensível e discreta. Tem um sentido de humor muito próprio e ambiciona ser atriz ou encenadora.
O meu filho Simão já tem 18 anos, pensa que sabe tudo e tem a pretensão de ser o “homem da casa”. É um rapaz descontraído, inteligente e sabe bem o que quer.
Abro a porta da varanda e, finalmente, o sol aparece envergonhado, por entre algumas nuvens. Tão bom! Depois de uns dias de nevoeiro e chuva, sabe mesmo bem!
Recostei-me na cadeira branca almofadada e bebi um café bem longo e quente.
Seguiu-se um duche rápido. Estava preparada para a primeira caminhada do dia.
Lembrei-me, novamente, dos avisos da minha mãe...
— Filha, se saíres à rua, só meia hora e de máscara! – dizia cautelosamente, do outro lado do telefone, já pela décima vez.
— Deves pensar que sou uma estouvada! – retorquia, como se viajasse no tempo até à rebeldia da minha adolescência.
“Mesmo que me aposse das asas da aurora, e se for morar nos confins do mar, mesmo aí, a Vossa mão me conduz e a Vossa dextra me segura.”
Salmos, 139: 9
Não saí de casa, sem antes ligar à Mel, a minha melhor amiga. Hoje foi o seu último dia de Isolamento por ter contraído Coronavírus. A voz dela denunciava francas melhoras, estava com uma ótima energia e começava a querer voltar à normalidade das suas rotinas.
Finalmente, saí à rua. Vestia leggings pretas, um casaco desportivo e uns ténis brancos. Sentia-me leve e confortável, de paz com a vida, feliz por estar bem e sentir o mundo. Caminhava, calmamente, tentando observar tudo o que me rodeava. Não se via ninguém na rua, passava só um ou outro carro, esporadicamente.
Já há muito que não saía para caminhar. Talvez, por isso, estivesse a valorizar de uma forma tão intensa. Gratidão, era o que sentia!
Olhava para o céu, para os jardins das moradias, contemplava o voo das aves que passavam em bando. Sentia os cheiros que vinham das casas, os aromas dos cozinhados e dos fumos que saiam das chaminés.
Inspirava, profundamente, para absorver as sensações e perceber as emoções que daí advinham.
— Gratidão! – exclamava, silenciosamente.
Regressei, sabia bem chegar a casa, o meu corpo acusava algum cansaço. Assim que fechei a porta, as notificações começaram a dar sinal; comecei a ler as primeiras mensagens...
— Olá, Nina. Como estás? Melhor? – perguntou o meu cabeleireiro.
— Olá, Charlles! Estou melhor, sim! – respondi, radiante.
Uns dias antes, eu tinha feito o teste ao Coronavírus. Recebi o resultado da análise, estava positivo! “Está tudo certo!”, pensei para mim mesma, no sentido de me tranquilizar...
Apesar de sentir sintomas fortes em todo o corpo, não iria desanimar, sabia que iria ficar bem. E depois de uns dias de repouso quase absoluto, bastante vitamina C e de muita paciência, recuperei bem!
“... Tornou, pois, Jesus a dizer-lhes:... Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância...“
João, 10: 10
— Tens um visual novo? Aquela máscara no teu perfil! – continuei a conversa.
— Já estava cansado da minha foto! Já agora, sobre o livro que estás a escrever, é um romance?
— É segredo. – afirmei, misteriosamente. – Não posso dizer-te... depois vês!
— És uma mulher de segredos. Estás em casa? – questionou Charlles.
— Sim, mas vou sair. – rematei, pois já não me apetecia conversar.
— Estou um bocado agitado!
— Então? – questionei, com alguma preocupação.
— Adorava ver-te!
— Deves acalmar-te, Charlles. Fica bem. – despedi- me.
— Ok. Boa campanha! Estás a dar o fora.
Não menti, ia mesmo sair, tinha de ir depositar o lixo.
O vento continuava cada vez mais forte e o céu escuro anunciava chuva intensa.
Voltei com boas intenções, projetava fazer algumas limpezas domésticas. Mas, em vez disso, deitei – me no sofá, perdida, novamente, nos meus pensamentos...
De repente, lembrei-me de ir ver fotografias antigas.
O telefone tocou, inesperadamente, era a minha amiga Mel.
— Olá, como estás?
— Olá, querida, estou bem. Estou a ver as fotos das minhas últimas férias com o meu ex-marido. – respondi.
— Isso não te faz mal? – perguntou, em jeito de alerta.
— Comecei agora, até acho piada! Daqui a pouco, não sei! – sorri, divertida.
— Vê lá, provavelmente, não te fará bem!
— Sei lá! Acho que depende do estado de espírito. – disse, despreocupada. – Estou a olhar para mim nestas fotos e, apesar de estar em família, parece que eu já não pertencia ali...concluo agora que, nesses últimos meses, eu já estava fora, mas nem me apercebia!
— Conta tudo, Nina!
— Dizem que não devemos falar do passado, mas com o David, acho que não me colocava no meu melhor!
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